Ervas, Mezinhas E Medicina Popular
I - Ervas, Mezinhas E Medicina Popular
1. História e Tradição
«Em todos os casos intrincados vinham consultar o
herbanário, e ele, seguro da sua
proficiência, em caso algum recusava o alvitre.»
Júlio
Dinis in Morgadinha dos Canaviais
O recurso ao reino vegetal para as mais variadas utilizações é tão velho quanto o Homem. Desde tempos imemoriais que a espécie humana( ao longo do processo de desenvolvimento físico e intelectual, a hominização), através do acaso e da observação do meio aprendeu a identificar as ervas, plantas ou frutos indispensáveis à sua dieta alimentar e à «arte» curativa.
Primeiro foi a recolecção! O homem teve à sua beira na natureza, durante milhares de anos, as ervas fundamentais às suas necessidades biológicas. O homem começou por valorizar e depender do reino vegetal para a sua sobrevivência e por isso foi sempre um vegetariano... mesmo que na sua dieta entrem produtos do reino animal.
O Homem em
natureza, numa relação de equilíbrio ecológico, aprendeu a recolher, a colher,
a ser um recolector de tudo o que necessitava e nos primórdios era o reino
vegetal que estava mais à mão como
tarefa individual que não precisava de grande organização social ou trabalho de
equipa(1). O conceito de recolecção significa colher e
seleccionar .Em termos etimológicos colher vem do latim Lego, como verbo de acção significa que era uma tarefa tendente a
apanhar da natureza aquilo que ela oferecia. Por curiosidade, acresce que
é a partir do verbo Lego
que surge a palavra legume, leguminosas...
O Homem é um ser natural e por isso começou por fazer a colheita de tudo o que crescia em seu redor no mundo vegetal para a sua sobrevivência. Assim, foi acumulando conhecimentos e fazendo aprendizagens que foi passando aos seus semelhantes criando uma memória útil como estratégia e suporte de vida. Era indispensável à vida saber quais os elementos vegetais comestíveis e com propriedades medicinais(2). Toda a história do progresso e desenvolvimento do Homem no referente à descoberta das propriedades alimentares e curativas deve ter sido um rol de experiências dolorosas e amargas e, por vezes, até mortais para chegar à faculdade de distinguir com relativo rigor no mundo vegetal o que era venenoso do que era inofensivo e benéfico. A actividade de recolecção deve ter estado numa primeira fase entregue tanto ao homem como à mulher mas, com a complexidade da caça e uma exigência de força «bruta» maior, a pouco e pouco apanhar as raízes, as folhas, as vagens de certas plantas ou os frutos passou a ser responsabilidade do feminino. Esta afirmação não comporta qualquer juízo sexista sobre a divisão sexual de tarefas mas quer-nos parecer que a mulher ao deslocar-se com o grupo em vincado nomadismo atrás da caça ao longo de enormes extensões de terreno sinuosos e perigosos, aproveitaria para ir aprovisionando os vegetais de que precisavam. Ainda hoje verificamos sem qualquer regra de frequência de validade cientifica, que o feminino está muito associado ao simbolismo do mundo vegetal(3).
A origem da procura de cura para a doença ou procura de alimento para a barriga são actos naturais e por isso podemos afirmar que desde os primórdios da humanidade o acto curativo/alimentar é a primeira conquista do espírito humano. A medicina popular nasceu das mais fundas e permanentes necessidades humanas. È lógico que os primeiros homens tiveram de procurar de forma aleatória os primeiros remédios mas, a pouco e pouco, foram fixando-os como cultura própria de transmissão obrigatória para salvaguardar a própria espécie. Assim o acto médico é tão antigo como o homem(4).
Desde a antiguidade clássica que gregos e romanos foram desenvolvendo estudos sobres os vegetais e elaborando descrições e listagens sobre as características e propriedades de ervas, plantas, raízes ou frutos. A produção escrita sobre o tema tem sido bastante produtiva. Desde Plínio, o Velho, Séc. I até ao Séc. XIX, várias obras foram escritas no âmbito da fitoterapia, do tratamento das enfermidades através das plantas, e de matéria médica geral que abordavam os produtos que vinham do reino vegetal, animal e mineral e os seus respectivos usos curativos.
Também os árabes deram um contributo enorme para o desenvolvimento dos conhecimentos fitoterapêuticos durante a idade média e dedicaram-se também ao estudo da agricultura. Introduziram na Europa novos conhecimentos e saberes sobre os usos dos vegetais na medicina e na agricultura. A tradição greco-romana e a cultura árabe vão influenciar os homens do Renascimento e do Século das Luzes.
1.1
Os Autores Essenciais e o Conhecimento da Botânica Médica
«Aplicarei os
regimes para o bem do doente, segundo o meu poder e entendimento, nunca para
causar dano ou mal a alguém. A ninguém darei por comprazer, nenhum remédio
mortal nem um conselho que leve à perda.»
Excerto adaptado do Juramento de Hipócrates
«O mundo foi
criado tendo em consideração o homem, está tão sabiamente organizado que cada
enfermidade encontra o seu correspondente remédio no mundo (natural) que a
rodeia.»
Paracelso (1493-1541)
A arqueologia provou que a mumificação no Egipto ao implicar abrir os corpos para lhes extrair as entranhas e introduzir as ervas de conservação prestou um grande serviço ao conhecimento sobre a botânica e anatomia. Egípcios, gregos, romanos e árabes foram povos fundamentais para o desenvolvimento dos conhecimentos de uma «medicina» de matriz racional com base no uso das ervas e plantas.
A partir da civilização greco-romana os avanços sobre os conhecimentos das doenças e respectivas curas foram interrompidos pela Idade Média dominada pela ideologia católica que condenava a maioria das curas populares, nomeadamente aquelas que recorriam ao uso de ervas e mézinhas. Quem o fazia corria o risco de ser perseguido e acusado de bruxaria, feitiçaria ou magia e, por vezes, torturado e condenado à fogueira por prática de magia negra.
Com o Renascimento a Europa, no Século XVI, recupera e valoriza os princípios curativos médicos baseados nos factores naturais e na observação dos sintomas do doente e inspira-se nos modelos da antiguidade clássica greco-romana, no pensamento racional.
Este despertar da Europa do Renascimento vai buscar os ensinamentos de Hipócrates (460-377 a.c ), considerado o pai da medicina que ajudou os gregos a libertarem-se das superstições e a observar de forma racional o doente e o meio para encontrarem uma solução. Também na Grécia, Aristóteles (384-322 a. c ) procurou de modo sistemático e racional estabelecer pontes de ligação entre as ciências naturais e a medicina. Os romanos imitaram e copiaram o pensamento racional helénico e assim temos o médico Galeno ( cerca de 130-200 ) que exerceu medicina natural e foi seguido por mais de mil anos. O médico árabe Avicena ( 980-1037) escreveu um verdadeiro tratado de medicina que conseguiu conciliar cristãos e muçulmanos, pois os seus ensinamentos médicos eram aceites por ambas as partes. Foi destes contactos civilizacionais, no bordejamento geográfico mediterrânico, que a súmula do saber sobre os remédios naturais, para o caso, os conhecimentos sobre ervas e plantas curativas se fixou na Europa ocidental.
Por outro lado, séculos antes, a tradição celta, através das nações de origem céltica que passaram pela Península Ibérica, deixaram fixado o uso das plantas e ervas para fins medicinais e curativos. Eram povos vegetalistas e animistas que tinham na natureza, principalmente na floresta, os seus segredos sobre as propriedades curativas do reino vegetal. Assim fixaram na cultura, no património e na memória galaico-portuguesa esses saberes. A palavra celta, etimologicamente, está associada a uma tradição. Os povos do Norte da P.I. adoptam as suas tradições. Os celtas com a sua cultura e tradições, os seus saberes, representaram a garantia de transmissão oral, de transmissão primordial por toda a península do uso de ervas e mézinhas. Os druidas eram profundos conhecedores dos remédios naturais, o seu conhecimento médico-popular viajou de terra em terra e por via oral foi-se fixando na memória do povo.
Paracelso (1529) na sua obra Practica Theophratus Paracelsi, e em outros escritos vai repudiar os ensinamentos de Galeno e Avicena e vai basear a sua medicina na observação e na experiência e vai introduzir na terapêutica várias substâncias do mundo vegetal, as primeiras drogas simples obtidas de plantas. Era um génio e dedicou a sua vida à procura de remédios e manifestava que o mundo foi criado de forma a que aonde estivesse a doença estaria o remédio, o que dá origem ao provérbio peninsular « aonde está o mal está a cura». Considerava que na natureza, ao alcance das nossas mãos, estariam os remédios para todos os males. Paracelso afirmava que só os ignorantes poderiam defender que Deus não havia colocado no mundo natural um remédio para cada doença. Conclui-se que para Paracelso as virtudes das plantas medicinais tinham sido produzidas por Deus e por Deus oferecidas ao Homem.
O desenvolvimento cultural renascentista impulsionou de forma ímpar a botânica médica através de autores como Conrad Gesner, (1516-1565), suíço, naturalista, André Cesalpino (1519-1603), italiano, médico e botânico e depois Carl Von Lineu (1707-1778), naturalista sueco, que com os seus estudos ajudaram de forma extraordinária o conhecimento sobre o reino vegetal impulsionando a farmacopeia botânica como ciência curativa aplicada.
Dos hortos medievais conventuais destinados para as plantas medicinais e aromáticas autorizadas pela igreja católica(5), com a renascença começam a surgir os jardins botânicos um pouco por toda a Europa associados aos naturalistas, a instituições de ciência e a universidades, devidamente organizados e a constituírem-se como verdadeiros locais de estudo das espécies. Tal significou um impulso significativo interclassista pois, homens de todas as condições sociais puderam dedicar-se livremente à recolha, uso e estudo das ervas e plantas.
A partir do Séc. XIX com o desenvolvimento da química as plantas ( a fitoterapia), começam a perder terreno para as drogas químicas compostas aplicadas ao tratamento médico. As drogas simples, contudo, estavam fixadas nos usos populares e na bibliografia continuando a utilizar-se, principalmente em meios mais isolados e rurais afastados de qualquer suporte médico local. As ervas e mézinhas sobreviveram à medicina química e electrónica. Hoje, começamos a assistir a movimentos de valorização da natureza e do mundo natural. Existe mesmo, felizmente, uma tendência global de valorização dos usos e saberes tradicionais.
A natureza, o que é natural – vegetal parece estar na moda, um pouco por todo o mundo assistimos a movimentos de cidadãos defensores do retorno à natureza, de protecção do meio ambiente e de valorização dos produtos naturais. Aparentemente, estes movimentos de cidadania têm introduzido uma grande valorização na relação do homem com a natureza, contudo, o ritmo de vida rápido da sociedade e as respectivas limitações sócio-profissionais dos indivíduos tornam muito pouco eficaz e pouco consequente essa miragem do regresso do homem aos remédios caseiros. A resistência à dor é cada vez menor e a pressa em solucioná-la faz com que cada vez mais as pessoas recorram ao comprimido (Químico) para as maleitas mais insignificantes.
Acreditemos que as pessoas comecem a valorizar os seus saberes, cheiros, sabores e modos de fazer tradicionais de forma adequada. Tal não significa a dispensa da ida ao médico mas, todos sabemos que, felizmente, a grande maioria das doenças não é grave e requerem apenas cuidados alimentares e fitoterapêuticos, repouso e tempo para o organismo reagir e combater a maleita ou a dor.
2.
Uso e Saber Popular : Isolamento e
Necessidade
«A alimentação e os cuidados medicinais em tempos
recuados, eram feitos seguindo o instinto e a fome.»
Eugénia Correia e Olívia Pinho in Construir
Sáude, Editorial Caminho, Lisboa
O recurso ao uso das espécies vegetais espontâneas, domesticadas ou criadas nas nossas hortas ou quintais para fins medicinais, alimentares, condimentares e aromáticos ou cosméticos tem uma tradição fixada no nosso concelho. Para evitar maiores perdas e fragmentações na transmissão por via oral resolvemos registar por escrito os nossos usos na utilização das referidas espécies. O nosso concelho tem uma tradição riquíssima que merece ser estudada e preservada de modo a evitar o seu desaparecimento e a delapidação deste património local.
A transmissão dos saberes fez-se através dos contactos civilizacionais fruto dos fenómenos migratórios em que a transmissão dos conhecimentos acontecia. No nosso concelho a arqueologia demonstra a presença romana e árabe e assim, podemos afirmar que a partir da cultura destes povos, profundos conhecedores das ervas e seus usos, foi feita localmente a passagem dos conhecimentos aos habitantes locais.
Os meios rurais estiveram sempre sujeitos a um grande isolamento e, o nosso concelho não é excepção, afastados do acesso à medicina convencional socorriam-se dos remédios caseiros. Este isolamento foi, de geração em geração, o elemento que produziu nos habitantes um grande sentido de natureza e os levou a aprender a conhecer as plantas com propriedades curativas.
A pobreza extrema em que muitas pessoas viviam até à década de 70 do Século XX, a grande maioria dos nossos habitantes estava nesse patamar, foi o outro elemento que fizera desenvolver uma atenção especial pelas plantas e pela aprendizagem dos seus usos para fins medicinais ou alimentares.
Estes dois elementos marcantes do modo de vida do nosso concelho levou a um profundo conhecimento sobre as espécies espontâneas e hortícolas e a dar uma atenção cuidada aos saberes essenciais na alimentação e na cura de maleitas. Daqui resultou uma excelente cozinha nutritiva, saborosa e cheirosa e uma excelente farmacopeia natural para muitos males.
Das condições adversas do modo de vida resultou um saber-fazer que urge reabilitar localmente como parte integrante da nossa identidade. Ganhámos uma excelente cozinha e uma excelente farmácia.
A natureza foi prodigiosa connosco dispondo ao nosso alcance os remédios e alimentos naturais essenciais para o nosso bem estar geral.
Domingos Boieiro
Notas
(1) Apanhar da natureza o que ela tinha para oferecer, tal era a função dos trabalhos e dos dias do homem primitivo, guiado pelo instinto, pela necessidade e a fome...
(2) Saber as propriedades das
ervas e os seus benefícios alimentares e medicinais foi uma competência que se
foi acumulando ao longo do tempo, com uma tradição remota instintiva e dedutiva que fazia com que o homem
procurasse curar a dor e saciar a
fome...
(3) Ainda hoje, o hábito brejeiro
e marialva de associar a mulher a uma flor parece encerrar em si muito do
simbolismo vegetalista associado á mulher.
(4) O Homem para sobreviver
precisa de passar aos seus vindouros as suas aprendizagens.
(5) Durante a Idade Média
(séculos XI, XII, XIII) os conventos e mosteiros tinham o seu horto com os seus
canteiros de modo planificado para ervas aromáticas, medicinais, condimentares
e alimentares indispensáveis à alimentação e à saúde. Estes hortos conventuais
e monásticos estavam muito associados ao assistencialismo clínico mas, sempre
condicionados pela ideologia da igreja. Houve mosteiros muito importantes a
nível da tradução pelos monges copistas das obras dos clássicos greco-romanos,
que permitiram salvaguardar e recuperar muitos conhecimentos sobre o uso das
ervas. O mosteiro de Saint Gall e de Monte Cassino, os mosteiros Beneditinos e
Cistercienses deram um grande contributo para a botânica médica.
Lamentavelmente esta farmacopeia e estes saberes dificilmente fugiam ao
controle institucional, viviam enclausurados intramuros. O povo, os camponeses
tinham de se desdobrar em mil cuidados com o uso das ervas, principalmente para
fins medicinais, pois corria o risco de acusação por práticas de bruxaria...
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