A Memória dos Figos da Horta dos Montes Velhos
A
Memória dos Figos da Horta dos Montes Velhos
(Alandroal)
Popular:
Figueira comum, figueira mansa, figueira da horta
Nome
científico: Ficus caria L.
Família:
Moracea
Hoje vi figos no
supermercado, não lhe soube a proveniência, mas desassossegaram-me deveras.
Lembrei-me dos figos da
minha infância. Mais ao menos quando já se adivinhava o final das aulas, pelo
final de junho, meados de julho, os figos lampos, isto é, os figos da primeira camada
faziam anunciar-se na Aldeia. Figos pretos! Todos os gaiatos marcavam no seu
calendário biológico o tempo dos figos da figueira da Horta dos Montes Velhos.
Eram figos disputados pela maralha.
Os nossos maiores
concorrentes eram a passarada, o estorninho preto, o malhado, o chapim de
poupa, a pardalada e o mítico papa-figos da cor do ouro. O hortelão não
contava! Era um grande amigo. Mais figo menos figo não era coisa que o
incomodasse!
Estes figos desta
figueira majestosa, enorme e frondosa, eram objeto de algumas brigas e desafios
entre a canalha. Um dos desafios era
pular para dentro do poço, trepar pelo empedrado e sair em segurança. Aquele
que conseguia, adquiria o estatuto de Rei dos Figos. Várias vezes obtive a
autoridade para fazer a partilha da colheita pela malta do pé descalço.
Mas, nesse dia, hoje
lembrado, o verão tinha chegado mais cedo e a água estava mais baixa. A subida
pelas pedras era quase impossível. Bem tentei! Bem me puxavam os meus amigos,
enquanto gritavam. Lá apareceu, felizmente, o Ti António Zé, o hortelão. Ele é
que permitiu que hoje esteja aqui a escrever estas palavras, que tenha ficado
aqui para contá-lo!
Uma homenagem ao
hortelão, aos meus amigos e aos figos, é o que se pretende com esta abordagem a
esta árvore e a este fruto.
De origem
mediterrânica, encontra-se em toda a orla deste mar entre mundos. Desde sempre
que a mitologia e a documentação se referem à figueira. A literatura dedica-lhe
muitas palavras. É a folha da figueira que, no jardim do paraíso, cobre a
genitália de Adão para não andar com aquilo ao léu.
A figueira é um emblema
e um símbolo destas gentes, que se encontra na dieta mediterrânica e nos
paladares do Al-Andalus peninsular. Fruto carnudo e suculento, tem uma coloração
exterior e interior, variando numa paleta de cores, passando pelos vermelhos vivos,
pelos rosas claros, até aos castanhos terrosos. São cores quentes e sensuais
que se apresentam até com uma certa carga erótica e malignidade.
“ […] O leite de Figo, na conotação popular,
está associado a poderes fálicos da figueira […], e tem poderes para fazer
crescer e pintar de branco, de ruivo, de amarelo, de negro, a púbis dos meninos
e das meninas: daí os termos populares pintelhos
ou pintelheira e os vários escalões
sócio-fisiológicos daí decorrentes – alvos e alvas, ruivos e ruivas, negros e
negras […]” [1].
Esta conotação decorre da tradição popular.
Sempre que os comemos estamos a comer uma vespa. A vespa
colocou lá os ovos. Mas, uma vespa decomposta por uma enzima produzida pelo
figo, a ficina. Esta enzima
maravilhosa transforma o bicho em boa proteína. Assim, as vespas são
fundamentais enquanto polinizadoras das flores da figueira. A vespa e o figo vivem
em simbiose e mutualismo.
Eugénio de Andrade dedicou-lhe este poema:
A
Figueira
Este
poema começa no verão,
os ramos da figueira a rasar
a terra convidavam a estender-me
à sua sombra. Nela
me refugiava como num rio.
A mãe ralhava: A sombra
da figueira é maligna, dizia.
Eu não acreditava, bem sabia
como cintilavam maduros e abertos
seus frutos aos dentes matinais.
Ali esperei por essas coisas
reservadas aos sonhos. Uma flauta
longínqua tocava numa écloga
apenas lida. A poesia roçava-
me o corpo desperto até ao osso,
procurava-me com tal evidência
que eu sofria por não poder dar-lhe
figura: pernas, braços, olhos, boca.
Mas naquele céu verde de Agosto
apenas me roçava, e partia.
A diversidade e a variedade da figueira são evidentes, existindo mais de 700 espécies classificadas, enquanto tal.
Muitos são os seus usos,
mas aquele do qual me lembro melhor, é da energia que nos dava o açúcar dos
figos comidos ali mesmo. Comidos até fartar, à sombra da Figueira dos Montes
Velhos.
Alguma literatura
referencia, e é também dito por alguns, que o figo faz aumentar o desejo
sexual. Dá “calores”!
Recordo a sopa de
tomate da minha Avó Rosa, acompanhada com figos.
Recordo o figo em passa,
curado na horta do Bexiga no Alandroal, que me chegava, de quando em vez, a
casa da minha Avó.
Eugénio
de Andrade, fez também este poema, onde refere os figos secos numa metáfora ao
processo de envelhecimento:
Prato de Figos
Também
a poesia é filha
da necessidade —
esta que me chega um pouco já
fora do tempo
deixou de ser a sumarenta alegria
do sol sobre a boca;
esta, perdida a fresca
e nacarada pele adolescente,
mais parece um desses figos
secos ao sol de muitos dias
que num inverno sempre se encontram
postos num prato
para comeres junto ao fogo.
O figo era alimento que, depois de seco, preparado e acomodado, se
comia durante o ano. Em especial, no dia de Todos os Santos, a “talega” da
maralha, pedindo por Deus de porta em porta, ficava
cheia de passas, amêndoas e nozes, que nos ofertavam. Umas passas, recheadas com amêndoa e com as nozes,
eram
algo de sublime que experimentávamos no fim. Memória esta que continua bem presente.
Recordo o figo meio
cozido, enrolado num pano, a fazer de chupeta docinha de um menino que ficou
sem mãe aos onze meses de idade.
Ouvi também contar que
as folhas de figueiras cozidas eram boa cura para males de estômago e para
combater os “diabretes”, entenda-se, baixar a glicémia.
O líquido leitoso do
figo e da folha passado diretamente nas calosidades, foi por mim visto ser
aplicado em muitos pés e, com bons resultados – tenho a recolha dessa
informação feita. Também esta matéria leitosa, se aplicada nas verrugas, dava
bons resultados.
Ao comer três ou quatro
figos seguidos, experimentamos um célebre laxante natural. Este, por mim
experimentado, sempre que necessário. Era remédio santo.
Na recolha etnobotânica,
por mim realizada, entre 2000 e 2006, informantes locais referiram que o chá de
folhas de figueira era também utilizado para expulsar as lombrigas.
Em termos de uso do
figo, a ciência refere que é muito rico em cálcio e potássio, aconselhando o
seu consumo. As folhas, comprovado igualmente, são oxidantes e contém elevadas
quantidades de insulina natural.
Trata-se de umas das primeiras plantas/árvore cultivadas pelo homem. Podemos
constatar que o figo aparece referenciado em todas as civilizações do
Mediterrâneo. Os romanos encarregaram-se de levar a figueira para a Europa
Central e do Norte. Por sua vez, os gregos e os fenícios trouxeram-na para a
Hispânia. É ai que o figo ganha o estatuto de excelência gastronómica com variações
maravilhosas de prazer e sublimidade.
Como mostra a história, podemos dizer que o figo sempre fez parte da
dieta e alimentação de todos estes povos de forma destacada.
Mais uma vez, nas
voltas da memória, o meu caminho continua para Sul, para casa, para o campo
repleto de elementos para explorar. Como tal, os figos são, por excelência, um
fruto dos comeres, saberes e prazeres do Além Tejo e do Al-Garb.
[1] PIRES, Célio, O País das Pedras, Viseu, S/D,
p.360
Relacionado:
O mutualismo entre a vespa e o figo
https://www.abc.es/sociedad/20150408/abci-higos-avispas-dentro-201504082010.html
Usos e propriedades do figo e da
figueira
https://falardistoedaquilo.blogs.sapo.pt/beneficios-dos-figos-70519
A figueira e a mitologia
http://cidmarcus.blogspot.com/2014/03/a-figueira.html
Tabela de composição nutricional (100g de porção edível)
|
FIGO |
FIGO SECO |
ENERGIA (KCAL) |
70 |
234 |
ÁGUA (G) |
79.1 |
25.6 |
PROTEÍNA (G) |
0.9 |
2.3 |
LÍPIDOS (G) |
0.5 |
0.6 |
HIDRATOS DE CARBONO (G) |
16.3 |
58.3 |
FIBRA (G) |
2.3 |
11.0 |
POTÁSSIO (MG) |
168 |
944 |
CÁLCIO (MG) |
35 |
235 |
Porção Edível = diz respeito ao peso do alimento que é consumido depois de
rejeitados todos os desperdícios. Fonte: Porto A, Oliveira L. Tabela da Composição de Alimentos.
Lisboa: Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge. 2006.
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