A Memória dos Figos da Horta dos Montes Velhos

A Memória dos Figos da Horta dos Montes Velhos

(Alandroal)

Foto Sobijoux. Prato de Figos

Popular: Figueira comum, figueira mansa, figueira da horta

Nome científico: Ficus caria L.

Família: Moracea

Figueira Comum...

Hoje vi figos no supermercado, não lhe soube a proveniência, mas desassossegaram-me deveras.

Lembrei-me dos figos da minha infância. Mais ao menos quando já se adivinhava o final das aulas, pelo final de junho, meados de julho, os figos lampos, isto é, os figos da primeira camada faziam anunciar-se na Aldeia. Figos pretos! Todos os gaiatos marcavam no seu calendário biológico o tempo dos figos da figueira da Horta dos Montes Velhos. Eram figos disputados pela maralha.

Ilustração Ficus caria. Créditos Wikipédia

Os nossos maiores concorrentes eram a passarada, o estorninho preto, o malhado, o chapim de poupa, a pardalada e o mítico papa-figos da cor do ouro. O hortelão não contava! Era um grande amigo. Mais figo menos figo não era coisa que o incomodasse!

Estes figos desta figueira majestosa, enorme e frondosa, eram objeto de algumas brigas e desafios entre a canalha. Um dos desafios era pular para dentro do poço, trepar pelo empedrado e sair em segurança. Aquele que conseguia, adquiria o estatuto de Rei dos Figos. Várias vezes obtive a autoridade para fazer a partilha da colheita pela malta do pé descalço.

Foto: jardineiro.pt, Figueira comum com figos lampos

Mas, nesse dia, hoje lembrado, o verão tinha chegado mais cedo e a água estava mais baixa. A subida pelas pedras era quase impossível. Bem tentei! Bem me puxavam os meus amigos, enquanto gritavam. Lá apareceu, felizmente, o Ti António Zé, o hortelão. Ele é que permitiu que hoje esteja aqui a escrever estas palavras, que tenha ficado aqui para contá-lo!

Uma homenagem ao hortelão, aos meus amigos e aos figos, é o que se pretende com esta abordagem a esta árvore e a este fruto.

De origem mediterrânica, encontra-se em toda a orla deste mar entre mundos. Desde sempre que a mitologia e a documentação se referem à figueira. A literatura dedica-lhe muitas palavras. É a folha da figueira que, no jardim do paraíso, cobre a genitália de Adão para não andar com aquilo ao léu.

A figueira é um emblema e um símbolo destas gentes, que se encontra na dieta mediterrânica e nos paladares do Al-Andalus peninsular. Fruto carnudo e suculento, tem uma coloração exterior e interior, variando numa paleta de cores, passando pelos vermelhos vivos, pelos rosas claros, até aos castanhos terrosos. São cores quentes e sensuais que se apresentam até com uma certa carga erótica e  malignidade.

“ […] O leite de Figo, na conotação popular, está associado a poderes fálicos da figueira […], e tem poderes para fazer crescer e pintar de branco, de ruivo, de amarelo, de negro, a púbis dos meninos e das meninas: daí os termos populares pintelhos ou pintelheira e os vários escalões sócio-fisiológicos daí decorrentes – alvos e alvas, ruivos e ruivas, negros e negras […]” [1]. Esta conotação decorre da tradição popular.

Foto: educarsaude.pt, Figos lampos

Sempre que  os comemos estamos a comer uma vespa. A vespa colocou lá os ovos. Mas, uma vespa decomposta por uma enzima produzida pelo figo, a ficina. Esta enzima maravilhosa transforma o bicho em boa proteína. Assim, as vespas são fundamentais enquanto polinizadoras das flores da figueira. A vespa e o figo vivem em simbiose e mutualismo.

Eugénio de Andrade dedicou-lhe este poema:

A Figueira

Este poema começa no verão,
os ramos da figueira a rasar
a terra convidavam a estender-me
à sua sombra. Nela
me refugiava como num rio.
A mãe ralhava: A sombra
da figueira é maligna, dizia.
Eu não acreditava, bem sabia
como cintilavam maduros e abertos
seus frutos aos dentes matinais.
Ali esperei por essas coisas
reservadas aos sonhos. Uma flauta
longínqua tocava numa écloga
apenas lida. A poesia roçava-
me o corpo desperto até ao osso,
procurava-me com tal evidência
que eu sofria por não poder dar-lhe
figura: pernas, braços, olhos, boca.
Mas naquele céu verde de Agosto
apenas me roçava, e partia.

A diversidade e a variedade da figueira são evidentes, existindo mais de 700 espécies classificadas, enquanto tal.

Muitos são os seus usos, mas aquele do qual me lembro melhor, é da energia que nos dava o açúcar dos figos comidos ali mesmo. Comidos até fartar, à sombra da Figueira dos Montes Velhos.

Alguma literatura referencia, e é também dito por alguns, que o figo faz aumentar o desejo sexual. Dá “calores”!

Recordo a sopa de tomate da minha Avó Rosa, acompanhada com figos.

Recordo o figo em passa, curado na horta do Bexiga no Alandroal, que me chegava, de quando em vez, a casa da minha Avó.

Eugénio de Andrade, fez também este poema, onde refere os figos secos numa metáfora ao processo de envelhecimento:

Prato de Figos

Também a poesia é filha
da necessidade —
esta que me chega um pouco já
fora do tempo
deixou de ser a sumarenta alegria
do sol sobre a boca;
esta, perdida a fresca
e nacarada pele adolescente,
mais parece um desses figos
secos ao sol de muitos dias
que num inverno sempre se encontram
postos num prato
para comeres junto ao fogo.

O figo era alimento que, depois de seco, preparado e acomodado, se comia durante o ano. Em especial, no dia de Todos os Santos, a “talega” da maralha, pedindo por Deus de porta em porta, ficava cheia de passas, amêndoas e nozes, que nos ofertavam. Umas passas, recheadas com amêndoa e com as nozes, eram algo de sublime que experimentávamos no fim. Memória esta que continua bem presente.

Foto: Canastra de Estói. Figos recheados

Recordo o figo meio cozido, enrolado num pano, a fazer de chupeta docinha de um menino que ficou sem mãe aos onze meses de idade.

Ouvi também contar que as folhas de figueiras cozidas eram boa cura para males de estômago e para combater os “diabretes”, entenda-se, baixar a glicémia.

O líquido leitoso do figo e da folha passado diretamente nas calosidades, foi por mim visto ser aplicado em muitos pés e, com bons resultados – tenho a recolha dessa informação feita. Também esta matéria leitosa, se aplicada nas verrugas, dava bons resultados.

Ao comer três ou quatro figos seguidos, experimentamos um célebre laxante natural. Este, por mim experimentado, sempre que necessário. Era remédio santo.

Na recolha etnobotânica, por mim realizada, entre 2000 e 2006, informantes locais referiram que o chá de folhas de figueira era também utilizado para expulsar as lombrigas.

Em termos de uso do figo, a ciência refere que é muito rico em cálcio e potássio, aconselhando o seu consumo. As folhas, comprovado igualmente, são oxidantes e contém elevadas quantidades de insulina natural.

Trata-se de umas das primeiras plantas/árvore cultivadas pelo homem. Podemos constatar que o figo aparece referenciado em todas as civilizações do Mediterrâneo. Os romanos encarregaram-se de levar a figueira para a Europa Central e do Norte. Por sua vez, os gregos e os fenícios trouxeram-na para a Hispânia. É ai que o figo ganha o estatuto de excelência gastronómica com variações maravilhosas de prazer e sublimidade.

Como mostra a história, podemos dizer que o figo sempre fez parte da dieta e alimentação de todos estes povos de forma destacada.

Mais uma vez, nas voltas da memória, o meu caminho continua para Sul, para casa, para o campo repleto de elementos para explorar. Como tal, os figos são, por excelência, um fruto dos comeres, saberes e prazeres do Além Tejo e do Al-Garb.

 

 

[1]  PIRES, Célio, O País das Pedras, Viseu, S/D, p.360

 

Relacionado:

O mutualismo entre a vespa e o figo

https://www.abc.es/sociedad/20150408/abci-higos-avispas-dentro-201504082010.html

 

Usos e propriedades do figo e da figueira

https://falardistoedaquilo.blogs.sapo.pt/beneficios-dos-figos-70519

 

A figueira e a mitologia

http://cidmarcus.blogspot.com/2014/03/a-figueira.html

 

 

Tabela de composição nutricional (100g de porção edível)

 

 

FIGO

FIGO SECO

ENERGIA (KCAL)

70

234

ÁGUA (G)

79.1

25.6

PROTEÍNA (G)

0.9

2.3

LÍPIDOS (G)

0.5

0.6

HIDRATOS DE CARBONO (G)

16.3

58.3

FIBRA (G)

2.3

11.0

POTÁSSIO (MG)

168

944

CÁLCIO (MG)

35

235



Porção Edível = diz respeito ao peso do alimento que é consumido depois de rejeitados todos os desperdícios. Fonte: Porto A, Oliveira L. Tabela da Composição de Alimentos. Lisboa: Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge. 2006.

 

 



[1]  PIRES, Célio (S/D). O País das Pedras, Viseu, p.360


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