Festa é Festa: Para uma sociologia da Festa...
Festa é Festa: Para
uma sociologia da Festa
Foto visitevora.net
“ O espírito da festa
acontece quando todos colaboram, participam e festejam.”
(anónimo)
O santo António nem começou, o São João não se gozou e o São Pedro não aconteceu, por causa da pandemia (2020, nota de registo para a História). Foi desta vez um vírus que interrompeu o nosso fulgor festivo.
As festas de terreiro, de arraial, de padroeira, recreativas, mais rurais ou mais urbanas estão limitadas pelos tempos pandémicos que obrigam a distanciamento físico e social para evitar contágios e multiplicações exponenciais de infeções que levem à morte e à incapacidade de resposta dos serviços de saúde.
Este tipo de situação já foi vivido muitas vezes ao longo da história em que as festas tiveram que ser suspensas, mas souberam resistir e perpetuar-se como elementos fundamentais de construção social.
Este ano não regressei à minha cidade, Évora, pelo São João para comprar os queijos dos alavões alentejanos, nem fui à minha cidade de adoção, Lisboa, para comer a sardinha no pão. Haveremos de voltar porque Festa é Festa!
Por isso, senti esta necessidade e urgência de pensar a Festa, enquanto fenómeno social coletivo.
Festa é Festa
Citando de memória J.J. Rousseau a propósito da Festa, podemos dizer que bastava no terreiro da village erguer o pau de festa, engalaná-lo da melhor forma, com ervas, flores e fitas coloridas e o sagrado e o profano haveriam de se encontrar ali, no centro marcado pelo pau de festa. O pau de festa passava a ser o território para onde tudo iria confluir.
Foto visitevora.net, Feira de São João, Évora, 2019
A Festa popular é aquela que lança raízes profundas nos confins dos tempos, associada aos ciclos telúricos das estações, aos ciclos agrícolas, é o que do ponto de vista social configura uma categorização primeira e indestrutível da civilização humana, porque cria laços e relações (Bakhtine, 1970)[1].
Para Durkheim [2], pai da sociologia, as sociedades tem necessidade de, a “intervalos regulares com as festas”, manifestarem sentimentos e ideias coletivas que reforcem a unidade e personalidade social. Esta personalidade é conseguida através de assembleias e congregações diversas em que o individual se une e afirma o comum. O mesmo se passa com as cerimónias festivas religiosas e/ou profanas, verdadeiras concelebrações de vida coletiva.
Durkheim também não faz distinção da importância da festa, da sua matriz religiosa, quer seja dos judeus festejando a fuga do antigo Egipto, quer seja na celebração das efemérides de Jesus Cristo. A FESTA é pois, profundamente, de raiz religiosa e sagrada, e por isso estabelece na comunidade onde acontece, uma espécie de “constituição moral” e um profundo acontecimento na vida quotidiana[3].
A cristandade feudal, nos séculos VII a X, ainda mal sedimentada junto do povo, procura através da festa popular fortalecer junto da comunidade a cultura religiosa. Como nos refere Simon[4], a Cristandade vai tentar integrar os rituais pagãos, como as saturnais, as maias e outras festas pagãs existentes no ocidente, nas festas do calendário religioso, fazendo coincidir o religioso com o tempo pagão. É um processo de integração e assimilação que conduz o povo a uma consciência de pertença a algo mais global , a um universo mais vasto que é a Cristandade Ocidental.
Eliade[5] ajuda-nos a perceber a importância da criação do santuário quer nas sociedades neolíticas, quer depois na antiguidade, e agora no cristianismo como um força de fixação e sacralização da comunidade. O santuário para além de local de festa e ritualização do sagrado é também um poderoso atrativo para o desenvolvimento urbano, através do aparecimento de aglomerados humanos em estreita ligação com locais mágicos-sagrados-religiosos.
Heers[6] fala claramente que a religião e a festa foram fundamentais na estruturação da sociedade medieval. A festa era efetivamente Popular.
A pouco e pouco, estes santuários, tornam-se locais de peregrinação e de romaria, afastando cada vez mais as reminiscências pagãs, e imprimiam ao elemento festivo um ritual cada vez mais litúrgico e próximo do discurso oficial da igreja católica. A FESTA é cada vez mais religiosa.
A festa é cada vez mais urbana nos séculos XV e XVI, é a cidade que se afirma como uma forma de organização social superior. A Cidade, introduz a pouco e pouco, a festa teatral e espetacular. Ordena os rituais pagãos, retira-lhes espontaneidade e liberdade, fazendo com que a FESTA seja também um momento de afirmação do poder. Primeiro a procissão religiosa, desfile orientado pelas relíquias , e só muito no fim há espaço para o terreiro, o pau de festa, o excesso, o baile, a transgressão, o folguedo popular e os comes e os bebes.
Festa dos Tabuleiros, Tomar. Foto Pinterest, autor desconhecido
O século XVIII de afirmação absolutista, do barroco, do horror ao vazio, faz da FESTA um espetáculo completamente encenado. Rui Bebiano[7], afirma que com o Barroco é o espírito de propaganda que toma conta da FESTA. A Festa serve para o poder se afirmar e ofuscar os mais pobres. É FESTA encenada, longe da liberdade ritual, longe dos hábitos populares e que serve de instrumento de poder. O caráter popular da Festa popular perde-se.
Estas festas encenadas, longe do povo, começam a ser contestadas, pela própria burguesia e teve nos enciclopedistas iluministas os primeiros críticos à festa Barroca. Rousseau[8] em carta sobre os espetáculos, escrita a D´Alembert, refere que não são estas festas que fazem os povos felizes. As festas do povo são “aquelas em que junto do pau de festa colorido” cada um de nós é ator, em que agimos para nos fazermos notados e para interagir com o outros para que fiquemos mais unidos, com maior coesão social e cultural, e com mais sentimento de pertença.
A revolução francesa, Revolucionária, vai recuperar um pouco a Festa encenada de forma simbólica para afirmar a revolução, contudo sem impedir que o povo tenha as suas festas cívicas, rituais, abertas, massivas e alegres.
A pouco e pouco, a FESTA, ao caminhar para o final do Século XIX, torna-se menos utilitária para o poder, torna-se mais descentrada. É uma festa de maior descanso e descontração para as massas.
Com o Romantismo a festa da aldeia, a festa mágica, mais medieval, onde ainda sobrevivem restos de paganismo, é um pouco recuperada.
Teófilo Braga, Laranjo Coelho, Leite de Vasconcelos e outros, na sua saga de recuperar as tradições e costumes populares do povo português, também dão um contributo para a valorização da Festa Popular e primordial do “pau de festa colorido no centro da aldeia”.
Foto de Pinto Lopes Viagens. Ruas Floridas em Redondo
No século XX, com o positivismo, a crença no progresso, na ciência e com a afirmação da sociedade industrial, regressam alguns dos elementos das “festas-espetáculos do Barroco”, nos grandes eventos, como as exposições universais de Londres e Paris, verdadeiras coreografias e “shows” festivos para a comunicação de massas. Eventos de uma grandiosidade quase à escala global onde se dá a tecnicização do espetáculo e o objetivo é comunicar com as massas. O exemplo da Exposição do Mundo Português, ilustra essa vertente de “show”, em que o povo era convidado a celebrar os feitos da nação colonial. Noutras cidades como Londres, Paris ou Roma, o povo era chamado a celebrar, em grandes eventos, a afirmação da sociedade industrial e capitalista.
Mas o povo, na sua imensa sabedoria, nesta época do digital e do pós-industrial, não deixa de celebrar sempre que pode de forma genuína e popular, no campo e na cidade, a “intervalos regulares” a sua FESTA POPULAR. A FESTA está aí e sente-se:
1) É pela FESTA que o homem se reinventa e recria quebrando atitudes de distanciamento para passar a envolver-se na dinâmica cultural propiciadora de fruição estética e artístico-cultural com uma enorme multiplicidade de programas.
2) A FESTA é uma condição necessária como zona de tolerância e de excesso para que o Homem se eleve e liberte por momentos do controlo social, para ser mais feliz.
3) A FESTA urbana ou rural é um espaço de multifacetadas gentes. É um fenómeno sociológico que deve do ponto de vista programático corresponder a matrizes da cultura popular, da cultura de massas e da cultura dita erudita.
A FESTA cria uma zona e um espaço relacional e convivial que eleva a capacidade de diálogo com o OUTRO. Permite também ao Homem, por momentos, transpor os limites da sua vida comum e vivenciar momentos de alguma transgressão social. Constitui uma paragem no tempo quotidiano duro e real, conferindo alegria e evasão ao Homem. A FESTA é palco de diferentes grupos sociais mas neste tempo, o que interessa é a festividade que ajuda ao estreitar de laços que promovem a coesão social.
Foto Pinterest, autor desconhecido. Festa das Flores em Campo Maior
A FESTA, é óbvio, sofreu alterações e mudanças ao longo dos tempos, mas as suas funções primordiais de celebração da vida, de manifestação de alegria, de afirmação simbólica do viver comunitário e como forma de construção social, mantêm-se ativa e presente no nosso imaginário. FESTA É FESTA. Haveremos de continuar a celebrar e festejar a vida em comunidade.
[1] BAKHTINE, Mikhail. L`Oeuvre de François Rabelais et La Culture Populaire au Moyen Âge et sous la Renaissance. Gallimarde. Paris, 1970.
[2] DURKHEIM; Emile. Las formas elementales de La Vida Religiosa. Akal Editor. Madrid, 1982.
[3] idem
[4] SIMON, Alfred. Les Signes e Les Songs. Essai sur le Théâtre e La Fête. Collections Esprit. Éditions du Seuil. Paris, 1976.
[5] ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano – A essência das religiões. Livros do Brasil. Lisboa, S/D.
[6] HEERS, Jacques. Festas de Loucos e Carnavais. D. Quixote. Lisboa, 1987.
[7] BEBIANO, Rui. D. João V – Poder e Espectáculo. Liv. Estante Editora. Aveiro, 1987.
[8] ROUSSEAU, Jean-Jacques. Lettre à D`Alembert sur les Spetacles. Garnier/Flamarion. Paris, 1967.
Muito interessante e cativante.
ResponderEliminarA leitura fácil é mais difícil de elaborar do que pensam os distraídos.
O que mais me surpreendeu foi dar por mim a perceber que nada sei sobre a Festa.
Obrigado, tem aí já alguma bibliografia que pode tentar ler... Recomendo começar com Jaques Heers... Festa de loucos e carnavais...
Eliminar