Guadiana: Os moinhos não sabem nadar…
Guadiana:
Os moinhos não sabem nadar…
CENTRO INTERPRETATIVO DOS
MOINHOS DO GUADIANA (Alandroal)
Mais ou menos por esta altura, final de Julho, preparávamos na mochila o farnel com o pão, o chouriço, o queijo, os frutos secos e outras miudezas. Vinho e aguardente também iam e uma manta. O estojo da pesca. E lá abalávamos para o moinho dos Mocissos no Guadiana, na Herdade dos Mocissos, Rosário, concelho de Alandroal. Uns de pasteleira e outros de motorizada. O importante era chegar lá.
As noites de calmaria e sem bafo, convidavam a passar um dia ou dois junto ao moinho. Antes das Festas em Honra de Nossa Senhora do Rosário que acontecem sempre no segundo fim de semana de Agosto, era pela certa que lá tínhamos que bater.
Foto de Zebaldino, do Grupo dos Amigos de Capelins . Moinho do Bolas
Estendíamos na cascalheira o material, montávamos as canas, preparávamos de forma segura o terreiro para o lume que havia de assar o peixe. Se não caísse nenhum na cana, íamos tentar a sorte através da milenar arte de apanhar peixe à lapa, que todos dominávamos com maestria. Consistia em nadar, mergulhar e meter as mãos nos buracos das pedras do poço do rodízio do moinho ou nas lajes de xisto do açude. Às vezes a coisa corria mal, umas escorregadelas que terminavam em esfoladelas ou engolindo metade da água do Guadiana, que nesta altura era sempre pouca.
O Moinho era o nosso refúgio de férias, o nosso local de brincadeira e de iniciação às saídas noturnas com autorização dos pais. Sentíamo-nos livres e independentes ali naquele pedaço de rio com o moinho, fonte e freixo, e a meio da encosta algumas centenárias azinheiras que nos abrigavam na hora de maior calor. No final da encosta ficava a casa do moleiro que também tinha um forno, um curral, uma cabana e outros cómodos e arrumações. O moinho era um sistema económico, social e cultural. Tudo inexoravelmente, sem dó nem piedade foi afogado pelo Alqueva a troco de promessas de desenvolvimento e de um futuro melhor.
No troço do Guadiana do meu concelho que vai de São Rafael, perto da Ponte da Ajuda até Monsaraz, nosentio da nascente para a foz, 20 moinhos e casas, e fornos e arrumos e memórias, foram afogados, e no troço da ribeira do Lucefecit mais 4 quatro desapareceram. Os que resistem aos rigores do tempo e à nossa indiferença coletiva, ao longo da Ribeira do Lucefecit até à Fonte Santa, estão completamente abandonados, em ruínas e em verdadeiro perigo de não passarem, a curto prazo, de amontoados nas margens a que será quase impossível dar sentido.
Em nome de todo este património hoje voltei a lembrar-me do Moinho dos Mocissos, o meu moinho…
“O Moinho dos Mocissos situado na margem direita, […] onde o rio inicia um dos percursos mais antigos deste pedaço de fronteira. É de planta rectangular, com dimensões internas de 3x7,5 metros. Tem duas pedras de mós de 1,15 metros de diâmetro. Tem um teto de abóboda de berço de média altura. O acesso ao buraco do poço do rodízio horizontal fazia-se pelo interior. Tem uma fresta de regulação de água em cada poço. A soleira da porta era de pedras de xisto e de ladrilho (tijolo) burro. Tem pequenas janelas no muro posterior e uma porta de grandes dimensões de acesso ao açude. A abóboda interior é de tijolo burro. Tinha casa de Moleiro. […]” (González, p.64)[1]
Acrescentemos que este moinho tinha também um caneiro para a pesca artesanal, tal como o moinho da Cinza, em Montejuntos, também tinha. “ O caneiro era uma pesqueira fixa instalada, a jusante dos paredões dos açudes, aos quais era adicionada uma rampa afunilada com uns orifícios laterais na base, chamados “ouvidos”, e com um ligeiro declive no sentido inverso ao curso de água, feita de pedra e cal e com estacas verticais de varas de arbusto ou em ferro.” (Silva, 2018: 26-27)[2]. Quando os peixes subiam o rio ao chegarem ao açude à zona afunilada, pulavam e eram arrastados para a armadilha ou para as redes que aí eram colocadas. Havia quem considerasse este tipo de pesca pouca amiga dos peixes e a criticasse por provocar grandes desequilíbrios na fauna piscícola. Hoje, seria certamente proibida e estaria debaixo de vigilância apertada.
Moinho Sistema. Casa do moleiro, moinho e arrumos
No Moinho dos Mocissos, o moleiro tinha também esta atividade de pesca artesanal no caneiro. E ainda, pescava também, com guitos, ou nassas, com redes e atarrafas. O moleiro complementava o seu orçamento familiar com mais esta atividade.
Da antiguidade da atividade moageira como fabricantes do pão da humanidade durante séculos e séculos, temos várias notícias, desde pelos menos há 9 mil anos com as mós de mão em que o homem pré-neolítico começou a incorporar cereais na sua alimentação. O neolítico de há 5 mil anos, assentou arraiais neste troço do Guadiana testemunhado pela nossa carta arqueológica (Calado:1994). Em Cheles há notícia de um moinho romano rudimentar no Guadiana. Os romanos aproveitavam a energia hidráulica para moer o cereal. Os árabes aperfeiçoaram o sistema na alta idade média. A pouco e pouco estes moinhos foram-se estabelecendo nas margens do Guadiana. E bem documentados estão nos textos oficiais das reuniões de Badajoz de 1276 entre Portugal e Castela. Afonso III e Afonso X, o Sábio regulamentam as funções dos moinhos, dos caneiros e das barcas de passagem no guadiana ( González, p.13; Silva, pp 15-21). E a partir daqui várias são as referências ao seu funcionamento (Barros, 1950)[3] pleno no século XV. Os nossos forais referem também esta atividade e sistema tecnológico[4]. A presença dos moinhos de rodízio, roda horizontal, no Guadiana passam a ter referências documentais até aos nossos dias (Oliveira, Galhano e Pereira 1983)[5].
Moinho com a água represa...
Da condição social e económica do moleiro havia a ideia que “[…] tinham uma condição relativamente boa, sobretudo se comparada com a dos trabalhadores rurais e a dos outros artífices, em razão da importância e rentabilidade do seu ofício, mas também das atividades complementares desenvolvidas pela generalidade dos moleiros, quer para consumo familiar quer para venda, como o cultivo de searas (seareiros), a criação de animais, a exploração de olivais, o serviço de carrego de sementes e de farinha à maquia, e a pesca.” ( SILVA, p. 64).
E também, no caso dos Mocissos e do Moinho da Cinza, havia a barca de passagem (a chata) de gente de cá para lá e vice-versa, nos caminhos da resistência às ditaduras e nas vidas de contrabando. A fronteira sempre foi um local de dor, resistência, conflito, trabalho e luta.
O moleiro junto da população até tinha uma imagem positiva, era considerado e estimado. Havia até a ideia de que viviam bem face à miséria generalizada. Mas havia também a ideia de que alguns moleiros eram um pouco mafiosos, enganando na cobrança das maquias (SILVA, p.65).
O Moinho dos Mocissos, aqui em reflexão, tal como os outros moinhos, era um sistema social e patrimonial. Temos de acrescentar que o moleiro também ganhava uns cobres através das paródias e ramboias que organizava a pedido de quem queria comer uma caldeita de peixe do rio. Aí o moinho e a casa do moleiro transformavam-se em restaurante à beira-rio. Eu ainda experimentei num 25 de Abril de 1976 ou 1977, em festiva comemoração, as delícia dessa caldeita com poejo da ribeira ou hortelã da ribeira. O Moinho dos Mocissos ainda moeu cereal para a reforma agrária. Mistura para os porcos de engorda com fava, aveia, cevada e centeio. Eu vi. Eu assisti. Foi o último moinho a parar. O Ti Zé Maneta e a Ti Veleza, resistiram até que puderam à tecnologia moderna de moagem.
Os seus filhos José Domingos Velez e Cristóvão Velez, estão aí vivos e prontos para contar algumas das memórias do seu quotidiano neste moinho, como informantes genuínos.
O Moinho dos MOCISSOS, foi para mim e os meus amigos local de convívio, de namoricos, de dormida, de pesca e paródia.
Foto de José Ruivo Neca. Interior de moinho do Guadiana
O MOINHO DOS MOCISSOS, os moinhos, no nosso imaginário, quer pela atividade moageira, quer pela dimensão social e cultural eram uma espécie de santuário onde a festa, a amizade, o fogo da noite, a luz do luar , o nascer do sol, a neblina da água, o voo da garça, o saltar do peixe, o brilho dos seixos da cascalheira ritualizaram de forma mágica o LUGAR na nossa memória coletiva. É esse lugar que queremos recuperar com um centro interpretativo.
A arte, a poesia e a literatura, pintaram, cantaram e contaram os moinhos, as suas vidas e as mágoas e alegrias.
Joaquim José Pacheco (Ti Pacheco), poeta popular de Montejuntos, Freguesia de Capelins, a propósito dos moinhos desaparecidos, expressa a sua dor e tristeza pelo seu desaparecimento[6]:
Mote
“Os moinhos alentejanos
Deram alma e vida
Com o decorrer dos anos
É uma imagem perdida
I. Tantos novos que admiram
Estes moinhos e as suas virtudes
Abóbodas e seus açudes
Que às intempéries resistiram
Que os antigos construíram
Em vários locais raianos
Com final tão triste
Do que foram pouco existe
Os moinhos alentejanos. […] (p.12)
Noutro poema, décimas, sobre o rio Guadiana e o enchimento da Barragem de Alqueva, lamenta as perdas que provocou:
IV. “ […] Não tem água nem verdura
Nem moinhos a moer
Já não dás para comer
O pão de farinha pura
Nem teus peixes em fartura
Estás dotado à pobreza
Tanta gente portuguesa
Que gozava a tua paisagem
Mas ó rio, a tua imagem
Não dás sinais de beleza […]” (p.13)
O Ti Pacheco dá expressão à amargura de muitos sobre o afogamento dos moinhos e sobre o desaparecimento dessa paisagem que marcava o território. São poemas de mágoa e sofrimento por um património que a Barragem levou e pouco deu em troca. Nestes poemas o povo mostra que continua a ter consciência do valor que o MOINHO teve nas suas vidas e na economia do concelho. O moinho aparece como elemento etno-cultural que importa resgatar para o presente através de um centro interpretativo. Porque não integrar este centro interpretativo como elemento de valorização na prometida construção de uma Praia Fluvial nas Águas Frias?
Guerra Junqueiro no poema a “Moleirinha”, Herculano no “Pároco da Aldeia” e Eça de Queirós nos seu conto o “Moinho” retrataram bem este universo fantástico e mágico subjacente à vida dos moinhos e dos moleiros.
António Gedeão (ou o saudoso prof. Rómulo de Carvalho) dedica-lhe este poema[7]:
“Meu moinho abandonado
Meu refúgio inocente
Meu suspiro impertinente
Meu social transtornado
[…]
Minha toca de selvagem,
Meu antro de vagabundo
Minha torre sobre o mundo
Minha ponte de passagem. […]” pp 4-5
Com Cervantes, e os seus moinhos de velas ao vento, onde D. Quixote
pensou serem gigantes que precisavam de ser combatidos, o moinho ganha um
caráter icónico e simbólico de uma importância cultural enorme levando os
moinhos para um lugar de destaque na história da literatura e do imaginário
coletivo. Os pintores flamengos colocaram o
moinho na história da pintura, nomes como Eugéne Boudin ou Van Gogh pintaram-nos
registando a vida típica e emblemática desta tecnologia.
Enfim, os argumentos já são suficientes para a defesa da recuperação das memórias desta tecnologia moageira no meu concelho.
1886, Moulin de la Gallete. Vincent Van Gogh
Quem sabe possa surgir um MOVIMENTO DE DEFESA DE UM CENTRO INTERPRETATIVO DOS MOINHOS DO GUADIANA, no Alandroal!
Este processo de luta começou em 2001 já com a ameaça de afogamento dos moinhos no horizonte. No âmbito das comemorações dos 700 anos do Castelo do Alandroal, numa comunicação que realizei , fiz o primeiro alerta e implorei que se unissem esforços para salvaguardar um moinho e fazer um centro museológico da atividade moageira no concelho. Pressionei a EDIA. Fiz sair no jornal Expresso, uma reportagem com textos “meus” e de Maria Luísa Rolim e fotos de Pedro Ferreira. Uma foto-reportagem, que é um hino ao bem escrever e bem fotografar, sobre os moinhos, as suas gentes e o seu desaparecimento.
Já em 1994, Manuel Calado, na Carta Arqueológica, alertava para a necessidade de os Moinhos terem um tratamento de atenção especial quanto ao futuro. Pressionei as forças políticas locais. Perdi, perdemos esta batalha na altura! Hoje talvez, quem sabe se o movimento crescer, se unirmos esforços possa surgir um CENTRO INTERPRETATIVO DOS MOINHOS DO GUADIANA.
A Arqueologia Experimental, a Antropologia, a História e a Arquitetura,
de forma colaborativa reúnem saberes e condições para de modo interdisciplinar
e colaborativo salvarem, (re)construindo, um moinho numa cota superior e/ou aí criarem
um centro interpretativo dos moinhos. Confesso: Era a solução de que mais gostava! Mas outra também serve…
Interessa, portanto, dar, assim, uso a este passado arquitetónico como património, reconstruindo-o, reatribuindo-lhe funções e atratividade/dignidade e associando-o, se possível, a um serviço de educação ambiental e patrimonial e, também, de dinamização social e de rendimento económico, designadamente, através do turismo rural e das atividades de lazer em meio rural.
Mecanismo e nomenclatura dos moinhos de rodízio
Como eu gostaria, ainda, de levar os meus filhos e os meus netos a visitar estas e outras memórias deste património afogado pelo Alqueva e pela nossa indiferença!
Este foi mais um texto de combate, por algo de que nunca desisti: A luta pela memória e pela história!
O Guadiana, a serpente do sul, antes do afogamento...
Domingos Boieiro
2020-07-19
[1] José António T. GONZÁLEZ. Los Molinos Harineros del Guadiana Fronterizo. Diputación de Badajoz, Badajoz. 2002.
[2] Luís SILVA. Os Moinhos e os Moleiros do Rio Guadiana. Edições, colibri, Lisboa. 2018.
[3] Henrique da Gama BARROS. História da Administração Pública em Portugal nos séculos XII a XV. Livaria Sá da Costa, 2ª edição, Tomo II, Lisboa. 1950.
[4] Manuel j.C. BRANCO & Francisco BILOU (coord.) Forais Manuelinos (Juromenha, Alandroal e Terena). Ediçoes Colibri, Lisboa. 2015
[5] OLIVEIRA, Ernesto Veiga de, GALHANO, Fernando, e PEREIRA, Benjamin. Tecnologia Tradicional Portuguesa. Sistemas de Moagem. INIC, Lisboa. 1983.
[6] Poetas Populares de Alandroal, Vol. 1, Edição da CMA, 2013, pp. 12-14
[7] António GEDEÃO, Poesias Completas, Portugália, Lisboa. 1964.
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