Leitura e Desenvolvimento Psicológico

Leitura e Desenvolvimento Psicológico

 

 

“ Do muito que cerca a criança, os livros constituem elemento actuante, tanto pela presença como pela ausência.”

Natércia Rocha

10 Notas de Reflexão

  1. A relação entre faixas etárias e interesses de leitura não é linear, mecânica, estanque ou enquadrável num qualquer modelo de desenvolvimento cronológico – psicológico. Existem variáveis que interferem na aquisição da  competência e interesse de leitura de natureza psicomotora, sociocultural e de intensidade de interacção da criança com o livro. Num ambiente em que o livro está ausente a criança não pode ser um elemento actuante sobre o objecto livro.

 

  1. Da primeira infância à adolescência, numa perspectiva de desenvolvimento cognitivo Piaget estabelece diferentes estádios, numa perspectiva construtivista, ou seja, a cognição ou conhecimento é um processo activo e interactivo entre o indivíduo e o meio.

 

 

  1. Piaget na teoria dos estádios de desenvolvimento ensina-nos que este se caracteriza por fases de equilíbrio  e transição entre níveis, ou seja, em função da interacção com o ambiente a criança pode através da qualidade das suas experiências atingir um nível superior, um patamar de cognição mais cedo, o que pressupõe que quando tal acontece resulta da intensidade e qualidade da relação da criança com a sua envolvência sócio – afectiva e da implicação educativa (escolar, parental e societal), onde está inserida. Assim sendo, também a relação da criança com o livro depende da intensidade e qualidade do contacto com o contexto da leitura..  A criança pode e deve começar a ler antes de ler. Existem factores que pode facilitar ou tornar difícil a construção do pensamento formal, aplicando-se esses mesmos factores ao tipo de relação que a criança vai estabelecer com o livro e a leitura. Estes factores podem levar a que, também, do ponto de vista da relação com o livro/objecto e a leitura  que crianças dentro do mesmo estádio de desenvolvimento piagetiano tenham interesses bastante diferentes. Piaget vai estabelecer estádios de desenvolvimento cognitivo:

 

a)     No estádio sensório-motor dos 0 aos 2 anos, a criança entende o mundo através das acções que realiza em si própria. As sua acções reflectem esquemas sensório-motores, tornando-se estes cada vez mais complexos e, a pouco e pouco a criança adquire a noção de objecto. Na sua fase final deste estádio a criança prepara-se para entrar  no pré-escolar, onde vai assumir um papel de actor recorrendo á fantasia para ultrapassar os seus medos. Assim, é importante do ponto vista da relação com a leitura que ofereçam livros seguros, com texturas, cores, formas para a criança estabelecer uma relação de identificação com o objecto/Livro.  A família, o educador deve contar e ler histórias, contar e cantar a partir do livro para habituar a criança a ouvir e percepcionar a identificação do objecto/livro atribuindo-lhe um valor. Estamos perante um conceito de literatura para crianças muito amplo mas, o mercado responde com livros de plástico, borracha, pano...para esta fase.

b)     No estádio pré – operatório dos 2 aos 6 anos, está no pré-escolar e prepara a sua entrada no 1º ciclo, fase onde se conjuga a leitura de imagens, de símbolos com a verbalização e aquisição da linguagem. Neste estádio ( com dois sub-períodos o pré-conceptual e o intuitivo), dos 2 anos até por volta dos 7 anos interioriza esquemas, age sobre as coisas, imita, joga, vai buscar aquisições e experiências e organiza um sentido para o que a rodeia. Torna-se o centro de tudo, atribui vida a objectos, tem amigos imaginários, inventa significados, vai gradualmente adquirindo conceitos e trona-se, a pouco e pouco, capaz de intuir o mundo que a rodeia. A criança está preparada para a leitura, para adquirir o gosto por tudo, o real e o imaginário, o irreal e o mágico, o que favorece a abertura da porta para a leitura. A leitura orientada,mediada e animada com dramatizações e jogos. A criança ganha o gosto pela leitura e participa. É uma fase decisiva e marcante. Ofereça-se à criança, a este herói, o contactocom livros de de contos, de animais, com imagens. A criança lê e atribui significados ás palavras, às imagens, desenha e representa. Cria e recria as histórias, acrescenta-lhes coisas novas. Aqui a qualidade e intensidade da implicação educativa no processo é decisiva para fazer nascer o leitor.

c)      Na transição dos estádio operatório (concreto)  para as operações concretas (dos 6/7 anos aos 11/12 anos), fase que corresponde ao 1º ciclo até ao final do 2ºciclo e a passagem para o 3º ciclo, a criança consegue progressivamente organizar e compreender. Aumenta e diversifica interesses, mensura e classifica, afastando-se do fim do mágico e imitativo. Adquiriu a competência da linguagem e da leitura. É a fase da leitura “fantástico-realista”. É o gosto de viajar pelos livros, conhecer outros povos e culturas, o gosto pelas aventuras e de assuntos completamente díspares do desporto à ciência. A leitura prepara, leva a criança ao raciocínio lógico-matemático e ajuda a prepará-la para o estádio seguinte das operações formais, mais abstracto e generalista. A criança afasta-se do concreto.  Começa a reflectir o mundo. Em termos educativos e familiares temos que ganhar o leitor com livros de acção, dar-lhe tempo e espaço para a leitura. A ilustração e a imagem continuam a ter um papel importante. A leitura documenta a sua curiosidade e desejo de saber. É a altura de apresentar outros géneros à criança, a poesia e o teatro. A criança pode ela própria ser escritora, actor e encenador dos seus próprios enredos.

d)     No estádio das operações formais (10/11 anos em diante até aos 15/16 anos) temos a criança  no 3º ciclo e a caminhar para a entrada no secundário, momento em que a implicação educativa tem de ser de qualidade e intensa em termos de leitura apoiada em métodos e técnicas de animação de leitura. O jovem pode aprender a conhecer as profundas transformações porque passa procurando resposta nos livros. Nos livros pode encontrar crianças com problemas semelhantes aos seus. Os temas de interesse aumentam. É um leitor critico de si e do mundo, selectivo. Literatura com humor, de aventuras, de mistério, com alguma acção e mesmo violência, policial, onírica, de ficção científica, policial, grupal (gang, grupo, bando) adequa-se a esta faixa etária. É na fase dos 12/13 anos que se torna crucial inscrever no jovem a matriz da leitura como fundamental para compreender, construir-se e posicionar-se. É aqui também que a escola tem de reforçar estratégias de leitura.


  1. Lamentavelmente, e  a minha experiência como professor, pai e bibliotecário e, os estudos comprovam-no, por volta dos 13/14 anos a posição da criança com “borbulhas”, rala de pêlos e de hormonas aos saltos, torna-se apática, adversa e desorientada  face à leitura e a si própria. O interesse diminui, quando não abandonado. Lê menos e deixa de ler por prazer. Lê por imitação de leitura de um colega ou os livros escolares. Por isso, a escola, a família e a comunidade devem reforçar as suas preocupações com a promoção do livro e da leitura. Criar bons espaços para o livro, dar tempo para a leitura, divulgar obras, criar programas e fornecer diversidade e qualidade.

 

  1. A escola e a BE, os professores e os pais, as instituições e as bibliotecas públicas não podem deixar de inventar e reinventar estratégias e metodologias que façam a criança, o jovem de 13, 14 , 15 ou 16 anos, continuar a ler para melhor aprender e melhor conhecer. Ler para crescer e crescer a ler. A partir desta fase só com muita diversidade, alguma quantidade, muita qualidade, temáticas adequadas, espaços e ambientes de trabalho agradáveis e confortáveis e tempo, será possível inverter a tendência de abandono da leitura pelo jovem adolescente . Nalguns casos quando a competência da leitura e o prazer de ler foi experimentado o jovem adulto de 17/18/19 anos volta ao lugar onde foi  feliz: Os livros e a Leitura.

 

 

  1. Peguei no modelo piagetiano de desenvolvimento do conhecimento e estabeleci relações com a leitura realçando as acções educativas a realizar numa perspectiva construtivista, necessárias por parte do profesor da escola, da família e da comunidade  como responsáveis por melhorar e qualificar o processo de relação da criança e do jovem com a leitura. Este modelo ensina-nos também que não podemos esperar e garantir resultados imediatos pelo que tem de existir planificação e continuidade das nossas acções em prol da leitura.

 

  1. Gostaria ainda de acrescentar ao modelo piagetiano a perspectiva de Levy Vygotsky, russo e contemporâneo de Piaget, que defende que a inteligência/aprendizagem/desenvolvimento têm origem social e dependem de uma forte interacção entre o desenvolvimento cognitivo e os processos educativos em que a interacção da criança/jovem com os outros, especialmente em situações educativas permitem a aquisição de conhecimentos. Piaget define que a socialização favorece o desenvolvimento da inteligência da criança, Vygotsky acrescenta que no contexto educativo mediado, a criança na interacção e inter-relação com os outros em termos de  aprendizagem e  desenvolvimento atinge níveis e processos psicológicos superiores mais rapidamente. O contexto social e cultural são fundamentais. Assim, a cultura e  o meio social podem também fazer evoluir as funções psicológicas elementares mais rapidamente. Vygotsky afirma que com a ajuda/mediação do outro (escola/professor) de forma organizada com actividades conjuntas a criança pode atingir um desenvolvimento mais rápido e de maior qualidade das aprendizagens. A relação com a leitura nesta perspectiva reforça a ideia de que com estratégias, metodologias e organização, orientação e mediação a criança pode aprender a gostar de ler para crescer e crescer a ler para atingir  e realizar o seu verdadeiro potencial.  Pena que a geografia e a política, não tenham posto em confronto, diálogo e reflexão na primeira pessoa as respectivas teorias do desenvolvimento e da aprendizagem.

 

  1. Com Vygotsky chegamos ao modelo sócio-construtivista que remete para a importância do contexto escolar para o desenvolvimento de actividades pensadas e estruturadas em meio escolar para todas as crianças sem excepção. A leitura aparece aqui como actividade cognitiva-social.


 

  1. Neste modelo um determinado interesse de leitura não se dá unicamente em função da idade ou da experiência do leitor. Cada leitor tem uma história de desenvolvimento, portanto não se podem estabelecer relações fechadas entre faixas etárias e interesses de leitura.

 

  1. Em 1999 (final do Século XX), período do “boom” tecnológico, do surgimento do hipertexto e hipermédia, surge um modelo de leitura interdisciplinar, assente nos princípios de A. Damásio (1996) sobre a forte interacção entre razão e emoção. Integram-se assim, na compreensão do comportamento da criança/jovem face à leitura aspectos sociais, históricos, políticos, culturais e étnicos. A predisposição para a leitura tem um carácter social – inter-racional o que complementa o modelo sócio-construtivista.  A leitura passa a ser vista como processo comunicativo em contexto escolar, negociado entre o professor e o aluno sobre o texto. Em síntese a leitura, o nível de leitura, as faixas etárias e os interesses de leitura resultam de factores motivacionais não isolados mas interligados.

 

Foto PNL 2027



Domingos Boieiro

 

Nota: Não se segue o AO

Bibliografia

 

BERGERON, M. (1982), O desenvolvimento psicológico da criança, Lisboa: P. Dom Quixote

FINO, C. (2001), “Vygotsky e a zona de desenvolvimento próximal: três implicações pedagógicas” in  Revista Portuguesa de Educação, 14 , pp 273-291

GÒMEZ DEL MANZANO, Mercês (1989) A criança e a leitura. Como fazer da criança um leitor, Porto: Porto Editora

PIAGET, J. (1956/1977), A linguagem e o  pensamento da criança, Lisboa: Moraes Editores

SOBRINO, J. (org), (2000), A criança e o livro, Porto: Porto Editora

TAVARES, J, & ALARCÃO, I. (1985/2002), Psicologia do desenvolvimento e da aprendizagem, Coimbra: Almedina

 

 


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