O assalto ao faval (falas da terra). Um conto infantil ou nem por isso...
O assalto ao
faval (falas da terra)
Um conto infantil ou nem por isso...
Era
notícia na aldeia Branquinha que no Monte dos Currais um imponente faval se
desenvolvera junto à ribeirinha. As faveiras em cacho, dobradas com o peso das
favas de palmo e meio, ameaçavam beijar o chão.
Era um
enlevo para os olhos e, principalmente, para as barrigas famintas que por ali
passavam.
Dava fama
a quem com gotas de suor o regaram, e com dores de costas o adubaram, e sacharam
de ervas daninhas e maleitas, e iria dar proveito a quem nem uma dor, nem uma
gota de suor lhe deitou.
De boca a
orelha, que nem os druídas na floresta, a notícia foi correndo como o vento e
assim, por este método usual na aldeia que não tinha telefone, chegou a vez do
Miguelito ficar a saber as maravilhas que se diziam do faval. Na altura não
ligou importância. Pensou: “Favais onde nos podemos deitar de barriga para o ar
a comer até ficar de cagulo é o que por aí há mais!”
Andava no
giro pela aldeia à procura de qualquer coisa que lhe pudesse ocupar o tempo e
proporcionar algum divertimento, quando passou à porta da tasca do Zé das
Bonecas e, como sempre fazia, lá foi meter o bedelho para matar a curiosidade, mas com muito cuidado não fosse corrido por algum biqueirada de sapato cardado, como já lhe acontecera algumas vezes.
“Tasca
não é lugar nem para gaiatos nem para mulheres. Estas que fiquem em casa que é
o lugar delas ou no campo a trabalhar, a mondar a seara, a sachar as cebolas na
horta ou a apanhar erva para o gado. Os outros, os gaiatos, que fossem aos ninhos, que fossem banhar para
a ribeira.” Era ainda assim desta forma que se pensava na aldeia! Mesmo assim, lá se resolveu a entrar na tasca do Zé das Bonecas.
Ao lado
esquerdo de quem entra, o pipo de vinho por detrás do balcão corrido, pejado de
copos e encostados os homens a falar da vida; uns a lamentar-se da seara que
não prestava, tinha apanhado muita água, outros a profetizar que o ano ia ser
mau. Sentados a uma mesa, a jogar às cartas quatro homens comentavam o faval do
Monte dos Currais, enquanto iam mandando as cartas para a mesa. É aí que se
prende atenção do Miguelito, nas favas!
Um dizia que ia dar mais de cem sacos! Outro associava a quantidade à boa maquia que o senhor do Monte
dos Currais, José de nome, Arrobas de alcunha, iria arrecadar depois de favas
colhidas, debulhadas, limpas e vendidas. Ao preço que a fava estava! Era um bom ano para a fava e para as outras
leguminosas, o grão, o feijão e a
ervilha. Ainda outro, em conversa cruzada, dizia que até lá estava de plantão,
o mesmo é dizer de guarda, o capataz do monte dos Currais. Figura passada a
papel-químico de um livro ilustrado de histórias de terror. Foi assim que o
Miguelito ficou informado daquela beleza de faval, pois havia algum tempo que o
Miguelito não passava por aqueles lados da ribeirinha.
Saiu da
tasca, para continuar o giro à procura da malta da brincadeira, mas não lhe saía
da cabeça o faval nem o Ventas ao Léu, o capataz do Monte dos Currais. O Ventas
ao Léu era o terror das crianças. Media bem 1,80 m de altura, uma grande
peitaça, uns braços que mais pareciam a perna de um touro e uns costados
largos. Um gigante!
Tinha no
lábio superior uma cicatriz que o deformava e lhe valeu desde criança a alcunha.
A cicatriz, diz-se, parece que foi o pai que lhe deu um murro por uma marotada
que não se conhece. Daquelas coisas que
acontecem quando pais e filhos perdem as estribeiras. Principalmente os pais,
porque nunca se viu cá na aldeia um pai com o lábio deformado por ter levado um
murro do filho.
Ventas ao
Léu, o terror da malta! Sempre que se queria meter medo a uma criança ia-se buscar
a figura do Ventas ao Léu! Várias vezes, em maré de traquinices menos aceites
pelos grandes, os avós e pais diziam: “Vou
chamar o Ventas ao Léu que tu vais ver como elas te mordem!”. Ventas ao
Léu, outro nome não lhe davam, por não conhecerem mais nenhum.
A gaiatagem
sempre que ele passava, tratava logo de dar ao pedal. Porem-se ao fresco! Era
uma porta que se fechava, um postigo que se entreabria para o ver passar.
Miguelito já não podia suportar aquele Ventas ao Léu, servo do senhor Arrobas.
Alma insensível! Rogou-lhe um chorrilho de pragas e atirou-lhe mais uma carrada
de nomes que não se dizem aqui. Dentro do Miguelito começou a crescer uma raiva
surda, um desejo grande à brava de desafiar de qualquer jeito o Ventas ao Léu.
Pensou e repensou.
Miguelito-galarito
em pé de guerra, coisa normal em crianças desta idade, via no Ventas ao Léu o
adversário à altura que derrotado lhe daria o “top” da popularidade na aldeia.
Havia de ser uma delícia ouvir: “O
Miguelito venceu o Ventas ao Léu.”. Isto seria reconfortante para o
Miguelito, capitão da malta. Subiria de certo na consideração do maralhal todo
da Branquinha. Passaria a ser cada vez mais respeitado. Ganharia brio e
prestígio. Na escola quando andasse no giro do recreio, pensou, todos dirão: “Miguelito é o nosso herói. Viva!”. “Olha o
Miguelito tão forte e esperto que ele é.”. Perante a antevisão desta
situação não hesitou mais, resolveu lançar na aventura de desafiar o Ventas ao
Léu!
Correu a
aldeia, juntou a malta do pé descalço e ei-los que partem à conquista do faval
guardado a sete chaves pelo Ventas ao Léu. Miguelito elaborou mentalmente as
regras do jogo! Esta consistia, basicamente, em violar a propriedade, encher os
bolsos de favas, voltarem sãos e salvos e gritar bem alto: “Ventas ao Léu, fomos-te às favas!”.
Maralhal
reunido: O Miguelito, o Zé da Chica, o Manuel da Rocha e o Chico Patudo, por
ser um bocado a atirar para o gorducho e ter ares de cu de chumbo, pois nos
campeonatos de fugida quase sempre colocava os campeões dos favais e outras
aventuras em perigo por se deixar ficar para trás. Bem se esforçava mas as
pernas não davam mais! Mas nem por isso os amigos o privavam desta marotada de
tanta responsabilidade, a maior que alguma vez já tinham planeado. Tal era a
amizade! Ou os quatros ou então nada
feito!
Miguelito
ajeita a boina, olha para os companheiros e pergunta (como quem não está nada
nervoso, mas confiante na certeza de tudo correr bem):
- Hei! Então, tudo pronto para o que der e vier?
Respondem
quase em coro, e quase porque havia umas desafinações no tom de voz:
- Sim! Responde com aparente firmeza o Chico
Patudo.
- Bem, sim... deixa-me fazer uma mijinha não
me venha a vontade no faval... sabes... balbuciou o Manel da Rocha, logo
seguido do Zé da Chica que muito cauteloso lançou no ar uma questão:
- Ouçam
lá! Eu estou pronto mas precisamos de planear a melhor maneira de chegar ao
faval sem o Ventas ao Léu nos cheirar.
Miguelito,
sentindo a responsabilidade que lhe cabia como capitão naquela missão
espinhosa, não se fez rogado e sossegou o Zé da Chica com firmeza:
-Não
precisas de estar com medo seu medricas! Está tudo pensado. Sigam-me!
Miguelito toma a dianteira e os
outros seguem-no em fila indiana como se fossem uma patrulha de infantaria em
reconhecimento. Foram aldeia abaixo andando, soturnos, calados e pensativos,
mas de olhar inquieto observando o terreno em pormenor.
Chegados ao fim do casario tinham
a recebê-los um riacho afluente da ribeirinha. Meteram por ele dentro cobertos
pelo pasto crescido nas suas margens. Aqui e ali uma silva, mais à frente uma
carreira de oliveiras. Protegidos pela mãe natureza chegaram a uma curva do
riacho, já próximo da ribeirinha, donde avistaram o faval! Miguelito mandou
parar.
- Chiu!
Calados! Vamos observar o que se passa. Atenção, olhinho aberto... Entretanto, um coelho que estava acamado numa
moita de juncos acordou sobressaltado, põe-se em fuga fazendo uma grande
barulheira no pasto já meio seco e nos ramos e imundices que havia nas margens
do riacho acumuladas pela sedimentação desde a última invernia. Apanharam um
valente susto!
Miguelito
muito aflito ordenou:
-
Baixem-se! Pode ser gente...
Assim
fizeram imediatamente. Passado um bom bocado de estarem deitados de barriga
para baixo com o ouvido à escuta, desataram a falar entre eles muito em
silêncio.
-Talvez
fosse um gato vadio ou outro animal! Disse o Zé da Chica.
- É melhor
esperar mais um bocado! Responde o Manuel
da Rocha.
Miguelito
estava a sentir um bichinho a roer na boca do estômago, não se sabe se da fome
se do susto e diz muito rapidamente:
- Seus
medricas! Estão com medo! Vamos embora ao assalto!
Era cerca
de dez horas da manhã. A hora do almoço estava perto, e já se sabe quem não
está a horas da sopa passa por debaixo da mesa e se os ânimos estiverem
exaltados ainda leva uns sopapos.
Foi este pensamento
que os tirou do impasse em que se encontravam. Seguiram viagem. E o faval cada
vez mais perto! Aproximava-se a hora de grandes apertos! O estômago contrai-se,
algumas gotas de suor teimam em escorrer da testa e sentem gotículas minúsculas
a formarem-se pela espinha abaixo. Bem! Àquela hora o sol já aquecia a valer.
Aceleraram
o passo pelo riacho abaixo e não tardou estavam junto à ribeirinha onde o
riacho vai desembocar. Redobraram os cuidados ! Pé leve, olhos abertos e
ligeiramente curvados para passarem despercebidos a alguns olhos indiscretos
colocados nalgum mirante, ou no Monte dos Currais, ou junto ao faval. Trincaram
os dentes, morderam os lábios e fecharam os punhos! E eis que finalmente se
encontram à beirinha do faval!
Realmente
era como diziam: “Favas de palmo e meio
de fazer crescer água na boca.”. Descontraíram-se e enfiaram faval adentro!
Tudo corria como planearam! De Ventas ao Léu nem sinal!
Começaram
a colheita e silenciosamente enchiam os bolsos. De vez em quando descascavam
uma e comiam! Já de bolsos a abarrotar o
Miguelito começou a encher a boina, sempre eram mais algumas que iam, quando
repentinamente se ouve um cão a ladrar. “Alerta!”.
- Calma!
Coragem e caladinhos. Dizia o Miguelito.
Entretanto,
Manuel da Rocha, que de calma e coragem tinha sempre uma certa míngua, ia
levantar-se para encontrar melhor refúgio na ribeirinha quando se deixa cair
fazendo um raio de um barulho desgraçado que acordou o ventas ao Léu de uma
soneca que batia à sombra de um freixo! Ergueu-se de um salto em toda a sua
altura e ficou bem visível aos olhos dos nossos amigos. “Que figura terrível!”, pensavam!
O cão
voltou a ladrar. Era o Farrusco, rafeiro alentejano, companheiro de Ventas ao
Léu e tido em grande respeito na Branquinha. Tinha umas garras bem afiadas pois
já tinha apalpado as canelas e nádegas de alguns que se tinham arriscado a ir
ao Monte dos Currais à procura, pela calada da noite, de alguma coisa que
minorasse as faltas na cozinha. Mas o Farrusco pressentindo as crianças
calou-se! Talvez por ser verdade o dito “
As crianças dos cães fazem cordeiros!”. Verdade ou mentira, o certo é que o
Farrusco aquietou-se! Por mais que Ventas ao Léu o incitasse: “Agarra que é ladrão! Agarra...”, o
Farrusco continuava deitado!
Os nossos
heróis batem em retirada apressadamente, não se desfazendo do saque! Miguelito
de boina cheia e bolsos a abarrotar salta pastos e estevas, lombas e belgas,
tropeça aqui, endireita-se mais ali! Vira-se constantemente e grita para os
companheiros:
-Fujam!
Dêem corda aos sapatos!
Manuel da
Rocha e Zé da Chica, embora não tão ligeiros, conseguem acompanhar o Miguelito
mas o Chico Patudo, esse já perdeu a cauda do pelotão, está cada vez mais para
trás! Já perdeu a carga de favas! Mesmo assim, as pernas recusam-se a obedecer
à vontade que tem de fugir para bem longe daquele inferno.! Os pés descalços já
sangram das topadas que deu em pedras e torrões! Sente dores das picadas dos
cardos e da salva brava que abundam naquelas paragens! A sua resistência
diminuiu, quase que vai a passo! É fatal! Ventas ao Léu gansa-o pelo fundilho
das calças. O capataz tem os olhos vidrados. Blasfema:
-Pivetes!
Fedelhos... Eu racho-vos ao meio. Venham cá todos senão aqui o Patudo leva uma
sova por vocês...
Contra
tais argumentos não há resistência possível! Não podem abandonar o Patudo
chumbinho. Miguelito pensa que já não vai haver elogios quando a escola
começar. Ninguém os vai chamar de heróis. Falhanço total! Chico Patudo está em
maus lençóis. Pensa: “Não há saída. Só
resta a rendição. Mas uma rendição honrosa, nada de bandeiras brancas, nada de
choraminguices, nem de humilhações !”.
Enquanto
envolvido nestas ideias Miguelito
lembrou-se de como seria bom a mãe chegar e salvá-lo daquela situação, mas
sabia mãe não chegaria! Disso, cada vez tinha mais certeza! Pois sempre que
precisava ela não aparecia! Habituou-se sózinho a resolver as enrascadas em que se
metia.
Avançou!
Seguido à distância pelo Zé da Chica e Manuel da Rocha em direcção ao Ventas ao
Léu e ao amigo Chico Patudo que estrebuchava nas manápulas do gigante na mira
de se libertar. Mais parecia a formiga e o elefante! O Miguelito parou a cerca
de dois metros e disse:
-Ventas
ao Léu, desculpe! Façamos um contrato: Nós damos-lhe as favas e você liberta o Chico e deixa-nos ir em paz...
- Alto! -
disse o Ventas ao Léu - Em primeiro lugar meu fedelho, vão levar uma sova...
Miguelito
e os amigos puseram-se a imaginar uma saída. O capitão apelou à coragem, chamou
o Manuel e o Zé e murmurou-lhes aos ouvidos:
-
Atiramo-nos a ele todos ao mesmo tempo... Ele cai, o Chico liberta-se e pomo-nos
a todo o vapor na alheta...
Enquanto
conferenciavam, Ventas ao Léu ia afrouxando a ira e até já tinha largado o
Chico! Todos ficaram muito espantados: “Como
era possível? O terrível Ventas ao Léu largou o Chico...”.
Entretanto,
o vozeirão do capataz fez-se ouvir:
- Rapazes!
O que vocês fizeram é muito feio. O que eu devia fazer era dar-lhes uma valente
surra e contar aos vossos pais. Mas... eu até gosto de crianças, vão-se lá
embora e levem as favas!
Inacreditável!
O capataz tornou a falar:
- Desapareçam!
Mais valia terem-me pedido o raio das favas que o patrão por isso não ficava
mais pobre!
Os nossos
amigos ficaram sem palavras! “Será um
sonho?”.Pensavam! “Podemos ir!”.
Foram-se afastando lentamente e a cada passo olhando para trás. Iam tendo a
certeza de que o Ventas ao Léu falava verdade! Traziam as favas, não levaram
surra até viram assomar nos lábios de Ventas ao Léu um sorriso...tinham quase a
certeza disso!
Sabiam
que na escola não iam ser apaparicados com “vivas”
e “hurras”, mas em compensação tinham
ficado a saber que o Ventas ao Léu não era tão mau como o pintavam. Até dissera:
“ O patrão não fica mais pobre por um
punhado de favas ....”.
Domingos Boieiro
Este texto não segue o Acordo Ortográfico
Este texto não foi revisto ainda...
Este texto ainda não tem a pontuação revista...
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Este texto não se importava de encontrar um ilustrador e um editor!
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