O Portal Manuelino da Igreja de Palhais (Barreiro)

O Portal Manuelino da Igreja de Palhais (Barreiro)

Foto 1 - Frente da igreja de Nª Srº da Graça com o Pórtico manuelino...

Nota Histórico-Artística

“Antes de o Barreiro se afirmar como principal povoação desta secção meridional da foz do Tejo, Palhais constituía o mais importante núcleo populacional da zona, estando ligado à Ordem de Santiago.

As origens da sua igreja matriz, dedicada a Nossa Senhora da Graça, andam lendariamente relacionadas com uma figura santiaguista, Paulo da Gama, irmão de Vasco da Gama, informação que, todavia, carece ainda de confirmação documental, podendo ainda haver alguma confusão acerca do empenhamento deste nobre no extinto convento de Palhais e não na igreja paroquial da vila.

Ao certo, sabemos que o templo foi construído nos finais do século XV, mas rapidamente ampliado por forma a desempenhar condignamente as funções de paroquial. Tal reforma terá acontecido por volta de 1530-35, eventualmente na sequência de estragos provocados pelo terramoto de 1531.

As obras terão continuado pela década de 30 e 40, e já estariam terminadas em 1553, ano em que uma Visitação da Ordem de Santiago descreve o monumento com os espaços que, genericamente, ainda hoje mantém, faltando fazer apenas o retábulo-mor, em laboração nessa data.


Apesar das suas modestas proporções, a igreja é um monumento relevante no contexto do Manuelino. Em termos planimétricos, é das poucas igrejas da primeira metade do século XVI que não possui distinção entre nave e capela-mor, inscrevendo-se, desta forma, no grupo de igrejas-salão, ainda que sem a monumentalidade das igrejas das Misericórdias ou, ainda mais distante, das igrejas de três naves à mesma altura.

Em todo o caso, esta continuidade espacial é uma das principais marcas e afasta-se dos figurinos góticos, marcando claramente o novo tempo artístico.
Palhais é ainda importante para a história dos arquitectos manuelinos, uma vez que a igreja anda atribuída a Afonso Pires, figura ainda largamente desconhecida. O mais natural é que tenha trabalhado para a Ordem de Santiago durante o chamado ciclo manuelino mas, até ao momento, nenhuma outra obra lhe está atribuída.

 As duas capelas funerárias, que se adossam lateralmente à nave, deverão ser da mão deste arquitecto, e testemunham uma qualidade usual deste período, de estrutura quadrangular e cobertura por abóbadas polinervadas, dotadas de três bocetes decorados com motivos vegetalistas e heráldicos, indicadores dos patrocinadores das respectivas edificações.


Elemento de melhor qualidade artística, o portal é a parcela que foi alvo de classificação. De arco tripartido sobre fustes lisos de bases e capitéis desenvolvidos e marcados por elementos vegetalistas, engloba uma dupla moldura relativamente complexa, trilobada inferiormente e festonada superiormente, terminando em três grinaldas de elementos igualmente vegetalistas. Ao centro, existe um escudete, onde se gravaram símbolos marianos, indicativos do orago do templo.

No século XVII, o monumento foi objecto de algumas obras, como o revestimento azulejar das suas paredes interiores, em painéis geométricos de tipo tapete, característicos de Seiscentos. Mas as principais alterações ocorreram na centúria seguinte (durante a primeira metade ter-se-á erguido a actual torre sineira), em especial após o terramoto de 1755, que sabemos ter causado alguns danos no edifício. Datará dessa altura a anacrónica terminação da empena da frontaria, "em lanços segmentares" ondulados, solução que, pela sua rudeza, contrasta com o portal manuelino.

O processo de restauro iniciou-se em 1956, por intermédio do pároco local, iniciando-se os trabalhos em Agosto do ano seguinte. A reabertura teve lugar a 24 de Maio de 1959, em cerimónia pública de carácter religioso.

Entre os achados verificados nessa altura, salientam-se várias sepulturas que foram deixadas no mesmo local, sem que tivesse existido qualquer estudo de âmbito arqueológico, o que dificulta, hoje, um melhor conhecimento do monumento e do contexto em que foi edificado[1]

Algumas notas de reflexão

1.      Sobre o mestre/arquiteto Afonso Pires

É dito na ficha técnica do site do Património Cultural da DGPC que o arquiteto Afonso Pires, desconhecido de facto e com ausência de dados biográficos, não teve a seu cargo outras obras, mas estamos em crer que o mesmo mestre aparece ligado à construção da obra da igreja de Nossa senhora da Assunção de Faro. Diz-nos Catarina Oliveira (2011), que  depois de alguns anos de interrupção, as obras voltavam a arrancar,(na dita igreja de Nª Srº a Assunção de Faro), desta feita já sob o patrocínio da rainha D. Catarina (então donatária da cidade de Faro). Atribuída ao mestre Afonso Pires, e integrando o pórtico, o dormitório e o claustro, esta segunda campanha "testemunha a penetração possível do figurino clássico na faixa meridional da metrópole" [2]

 

O mesmo afirma Dália Paulo: [... Podemos concluir que, apesar das várias fases, trata-se de uma obra de conjunto, à qual estiveram ligados ao longo de 45 anos: Afonso Pires, mestre-de-obras, a trabalhar com ele os pedreiros António Gomes, Gomes Torres e, a fechar esta empreitada renascentista, Gaspar de Torres[…] a edificação do convento decorre nas épocas manuelina, de D. João III e nas Regências.”[…] Sob o patrocínio de D. Catarina, mulher de D. João III, de 1529 a 1550, a fase mais activa do estaleiro, tendo como arquitecto Afonso Pires[…][3] Podemos concluir que este Afonso Pires é o mesmo da Igreja/Convento de Nª Srª da Assunção de Faro que teve o seu início de construção entre 1518 e o seu fim em 1550. A nossa igreja de Nossa Senhora da Graça de Palhais inscreve-se na mesma linha temporal. A construção do portal é datado de 1539.

2.      Os Azulejos Enxaquetados

Os azulejos enxaquetados, são mais tardios, seguramente do século XVII, já no final do manuelino. Formam uma malha geométrica com cor verde e branca. Forram as paredes laterais por completo até cerca de 1,20 metro de altura. Estes azulejos estão em toda a volta da nave central  até ao altar-mor. São usados também a ornar os arcos das capelas laterais sul e norte e a zona da pia batismal/batistério. Vendo bem, existem algumas similitudes como os do coro baixo da igreja do Mosteiro de Santa Cruz (algo que teremos ainda de aprofundar).

Foto 2 - Azulejos enxaquetados verdes e brancos...

3.      Os Supostos Azulejos Hispano-Mouriscos

Dificilmente poderemos afirmar que são hispano-mouriscos. Podemos sim afirmar que tem influência de origem “muçulmana”[4]. Não serão originais, mas são boas imitações. Estas imitações foram muito desenvolvidas no século XVII, quase como moda. Há nestes azulejos do altar-mor e das capelas laterais uma marca hispano-mourisca sobre as superfícies parietais das pedras de altar. São semelhantes aos azulejos de tipo “corda seca” tem elementos geométricos predominantes e entrelaçados retilíneos e curvilíneos são vegetalistas e outros, têm também elementos simbólicos da ordem de Santiago como o botão azul central de 4 pétalas com quatro cruzes de flor-de-lisadas e cruz pronunciada estilizada a partir da cruz de Malta e/ou de Cristo. Também podemos aceitar que sejam cruzes estilizadas da ordem de Santiago. As medidas são de 13 cm x 13 cm.[5]

Foto 3 - Azulejos hispano-mouriscos ou uma boa imitação... do Altar-Mor

4.      O portal manuelino de Palhais

É um pórtico tardio do manuelino. Com a largura de 2 metros e altura de 2,70 metros. Da base decorada até ao capitel o colunelo tem 1,70 metros. A decoração é vegetalista. Tem um arco tripartido. Tem uma dupla moldura com um escudete  de albarrada de vaso de onde emergem elementos vegetalistas/flores ao centro, e depois  no exterior tem flores de lis, uma de cada lado e ao centro corda entraçada e acantos. O colunelo do pórtico tem na base três elementos geométricos e no capitel tem uma flor de 4 pétalas, duas voluptas e uma espécie de jarra. De cada lado do portal temos uma cruz de cada lado de Malta /Cristo estilizadas a marcar o começo do espaço sagrado e como elementos de proteção.

Foto 4- Portal manuelino

Foto 5 -Portal com duas cruzes de cristo, uma de cada lado como símbolos de proteção e marcação do espaço sagrado


5.      Nave Única até ao Altar-Mor

É uma igreja-salão, ao gosto daquilo que foi  a tónica ao logo de todo o século XVI. É uma nave única que vai até ao altar-mor. Não haveria nem bancos nem cadeiras ou outro mobiliário até por volta de final do século XVI. A prática de colocação e mobiliário surge só por volta do final de século XVI. A abóboda devia ser uma abóboda de berço rebaixada , talvez com “lunetas”. A abóboda assentaria sobre as próprias paredes. Com as obras de ampliação e restauro de 1950 foi colocado o tecto de ripado de madeira com cumeeira, madres, frechais, escoras e barrotes para suportar o ripado . Por debaixo deste ripado poderão ainda ser visíveis alguns elementos da antiga abóboda. Tem a nave cerca de 30 passos de comprimento e 12 de largo. Dentro da nave única temos mais 4 cruzes de Malta/Cristo estilizadas nas paredes. No altar-mor temos uma singela imagem de nossa senhora da Graça. Humilde e ao mesmo tempo  é capaz de transmitir um espírito de uma elevada e profunda espiritualidade. Temos duas pias de água benta uma à entrada ao lado direito e  a outra ao lado da porta lateral virada a norte. O crente, ao penetrar no espaço sagrado deve sujeitar-se à purificação daí, do ponto vista litúrgico, a sua localização junto das portas de entrada.

Foto 6- Pormenor do altar-mor com os Hispano-Mouriscos...

Foto 7- Ao fundo o nartex em madeira visto do altar-mor. Nave única. Tecto em madeira

6.      As Capelas Laterais

A capela do lado norte é dedicada ao Espírito Santo. Tem abóboda de cruzaria em alvenaria com elementos vegetalistas. A capela lateral do lado sul é dedicada a São Miguel e também é de abóboda de cruzaria em alvenaria com elementos vegetalistas. Em ambas as capelas, as nervuras assentam em elementos de mármore acoplados/metidos na estrutura da parede. Em cada capela temos mais uma cruz de Malta/Cristo estilizadas como elementos de proteção.

 

 Foto 8 -Capela lateral norte dedicada ao Espírito Santo..

Foto 9- Capela lateral sul dedicada a são Miguel...



7.      A Torre Sineira

É claramente uma construção do século XVIII, com três sinos. Acesso pelo interior em escada. Os sinos eram tocados por dentro e não pelo exterior.  O sino/campanário para marcar o ritmo e o tempo do sagrado, mas também para marcar o calendário comunitário, da morte, do trabalho, da festa, da guerra, do fogo enfim,  da vida. No cimo da cumeeira da parte de entrada virada a poente temos uma cruz latina, claramente deste século. Na parte anterior da igreja na cumeeira por cima da zona do Altar-Mor temos uma cruz de Malta/Cristo estilizada, mas também do século XX.

 

Foto 10- Lateral norte com a torre sineiro de 3 sinos de bronze... acesso por escada interior e tocados por dentro... do século XVIII. Hoje tem um mecanismo elétrónico, com relógio  de temporizador.

8.      Serralharia Decorativa

Existem alguns elementos de serralharia artística em ferro, claramente do século XX, na grade de fecho do batistério, na porta lateral do lado norte com elementos em losango, elemento de proteção, e com esfera armilar e cruz a finalizar a composição.

 

Foto 11 -  Serralharia decorativa, século XX. Esfera armilar e losangos...

Por fim, podemos dizer que o portal é de facto manuelino, estilo genuíno, atribuído quase de certo a Afonso Pires. A azulejaria é no caso dos azulejos enxaquetadas bastante tardia, e no caso dos supostos hispano-mouriscos serão boas imitações do séculos XVII-XVIII. O manuelino, como sabemos é uma arte heterogénea e essas influências estão presentes no pórtico manuelino e pressentem-se naquilo que teria sido a igreja original. O conjunto artístico está bem conservado e é um espaço do património religioso a estudar e  a aprofundar. Do ponto de vista da educação patrimonial tem muitos elementos para serem estudados pelos nossos alunos e que podem, também, interessar ao público em geral.

A igreja de Nossa Senhora da Graça de Palhais é um elemento, uma estrutura patrimonial a valorizar, visitar e divulgar.

Em suma, esta igreja é o único Monumento Nacional Classificado do Concelho do Barreiro. Apresenta uma grande sala com uma capela lateral de cada lado, a modo de transepto. É uma igreja de estilo manuelino mas assinalando a transição para o renascimento, devido aos restauros aí efectuados em finais do século XVI. Disto estamos certos. Os azulejos que revestem as paredes são do tipo enxaquetado, verdes e brancos. Abrem-se nesta nave única duas capelas laterais de estrutura gótica cujas abóbadas já denunciam a nova linguagem arquitectónica do conjunto do monumento. Conserva o primitivo portal manuelino,­ uma verga trilobada que é encimada por motivos fitomórficos e geométricos, tendo no centro uma pedra de armas, com insígnias heráldica.

Foto 12 - Nave única com duas capelas laterais. Vai do nartex até ao altar-mor...

 

Deixamos aqui um conjunto documental fotográfico para ser refletido, comentado e, também, registado para o futuro, em jeito de fotorreportagem:

 

 Lateral direito do portal


 escudete albarrado vegetalista

  Pormenor da base do colunelo do portal, três traços geométricos...


A igreja tem no total seis cruzes de cristo/malta estilizadas de proteção e marcação do sagrado

Pormenor do capitel da coluna do arco da capela lateral norte com âncora/cruz estilizada, voluptas e botão com 4 pétalas



Capela lateral norte com abóboda de cruzaria em alvenaria, com fecho de flor de seis pétalas e as restantes de 4 pétalas...

Capela lateral sul, com abóboda de cruzaria e com símbolo no fecho que desconheço... já foi visto nos eremitérios da Arrábida por Luís Lobato Faria... será um símbolo de proteção, apotrotaico do espaço e dos crentes?

Uma das pias de água benta, de purificação dos crentes junto à porta lateral esquerda, lado norte... pormenore dos azulejos enxaquetados...



Pormenor do lado esquerdo do portal com os elementos vegetalistas de fecho da segunda moldura do pórtico... acantos, voluptas, flor lisadas, botão de quatro pétalas, escudete albarrado heráldico


Pormenor do capitel do lado direito do portal...corda, acantos e voluptas...

Cruz de cristo/malta na cumeeira da parte de trás da igreja... século XX, quase de certo...


Pormenor do arco da porta lateral norte. Provavelmente original do século XVI



Imagem de Nossa Senhora da Graça


Altar-mor azulejos hispano-mouriscos?

Lateral da pedra de altar...

Capela lateral sul ... também com azulejos hispano-mouriscos?

Outro pormenor do altar-mor com a decoração azulejar...

Mais um pormenor da lateral da pedra de altar decorada com azulejos...

Outro pormenor decorativo com azulejo de influência hispano-mourisca ou uma boa imitação...

Pequena janela lateral... luz filtrada por vidro do Século XX

Janela na nave única, maior, com proteção em ferro com losangos e vidro de tom amarelo . Século XX


Pormenor da alabarda/puxador da porta encimado com um cruz de proteção  e delimitação do espaço do sagrado...


Domingos Boieiro 1 de Agosto de 2020


Comentários

  1. Boa tarde. Li algures que em tempos existiu uma fábrica de azulejos tipo hispano mourisco em Santo António da Charneca. Seriam esses azulejos de lá????

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  2. A Nossa Senhora da Graça era uma Irmandade da Igreja Matriz de Alhos Vedros, pelo que a Igreja de Palhais foi e é uma filial da Igreja de Alhos Vedros. Dom António de Sousa, morador na sua Quinta de Palhais no termo e jurisdição de Alhos Vedros foi um dos primeiros Provedores da Santa Casa de Alhos Vedros

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