Os Contos dos Irmãos Grimm: Velhos Ritos, Novos Valores
Os Contos dos Irmãos Grimm: Velhos Ritos, Novos Valores
A Importância do Conto Tradicional
Enquadramento
Histórico
O século XVIII é o século da criança e da educação, e o século XIX
vai reafirmar através da corrente artística e literária conhecida como
romantismo a importância de recolher do oral, do povo, do folclore a conhecida
e aceite “literatura de expressão oral”, porque todas as outras expressões
podem ser confundidas e menorizadas. Os contos populares foram a fonte de
inspiração para a literatura para crianças e jovens.
Um pouco por todo o mundo inspirados pelos valores do romantismo
de valorização dos clássicos, da antiguidade clássica e do imaginário medieval,
vários coletores recuperam, adaptam e recriam o oral através da fixação
escrita. É neste movimento de afirmação da identidade nacional face ao
expansionismo napoleónico que se inscrevem os irmãos Grimm (1812-1822), na sua
Baviera e, outros como H.C. Andersen (1835) e, em Portugal (Sécs. XIX-XX),
nomes como Adolfo Coelho, Teófilo Braga e, mais tarde Leite de Vasconcelos que
animadas pela recolha de elementos identitários recolhem contos de todos os
géneros. Os irmãos Grimm foram talvez os mais famosos graças aos seus contos
que permanecerão para sempre através de personagens como Hansel e Gretel ou a
Branca de Neve.
M. A Seabra Diniz (1998: PP. 47-75) ajuda-nos quando: i)
usa a designação de literatura de expressão oral para mencionar e inscrever os
contos, lendas, fábulas, anedotas, provérbios, adivinhas, canções e outras
rimas que de autor desconhecido, têm circulado oralmente; ii) diz que esta
literatura integra o indivíduo num determinado grupo a quem confere marcas de
identidade; iii) recorre a JUNG para afirmar que cada indivíduo é portador duma
herança comum a toda a humanidade, aquilo a que se pode chamar o inconsciente
colectivo; iv) elucida que na história da cultura a obra literária oral
tem precedência sobre a escrita; v) diz que os contos populares são a expressão
mais pura dos arquétipos do inconsciente colectivo; vi) afirma que é nesta
literatura (contos) que se transmitem os costumes, as regras, e as interdições
da comunidade.
É a esta literatura de expressão oral, através do conto, que
transmite conhecimento, entretenimento e que ajuda a criança a encontrar um
sentido para a vida. Através do conto a criança aprende a conhecer-se, quer
através da sua forma oral, quer escrita.
Mas a passagem a escrita do conto, foi depurando o conto na sua
origem retirando-lhe os elementos que uma sociedade localizada no tempo e no
espaço considera contrários aos valores dominantes.
Os próprios irmãos confirmam a ideia de recreação e adaptação dos
contos. Wilhem era defensor do purismo da recolha e compilação, defendia que o
conto deveria ser passado a escrito tal e qual era contado, ao passo que Jakob
ao recolher retocava, recreava e depurava o conto pensando na correção escrita
e no público infantil a que se destinava o conto.
A Depuração e Adaptação do Conto
A tendência atual é retirar dos contos tradicionais
elementos e temário politicamente incorretos. A falta de respeito, a violência,
a exploração da mulher, o gozo pelos baixinhos, a existência de um rei, de um
soberano, a guerra, todo este temário/elementos presentes em muitos contos
tradicionais são depurados, e até eliminados para se adequar aos valores atuais
de uma sociedade onde o respeito pelo outro, a tolerância, a aceitação da
diferença, os direitos humanos fazem parte do nível discursivo.
Contudo desta forma, impedimos a criança de contactar com outros
modelos e exemplos de interioridade do ser humano. Impede-se a criança de “ através
deles(os contos), aprender mais sobre os problemas interiores do ser
humano, do que com outros contos aparentemente mais atuais.” Diniz (1998:
p. 56). A adaptação dos contos tradicionais que hoje se fazem evitam falar da
morte, da guerra, do envelhecimento. Escondendo da criança que a vida é feita
de conflitos e dificuldades mas que é possível vencer. O conto tradicional pode
ter um enredo violento, impróprio, conflitual mas acaba sempre com uma solução,
um final feliz ou razoavelmente feliz. “No entanto, a criança precisa que
lhe sejam dadas sugestões, em forma simbólica, sobre o modo como lidar com
estas questões (conflituais) para ir amadurecendo lentamente” Diniz (1998:
p. 56).
A criança gosta de descobrir, pelos seus próprios meios o sentido
das palavras e expressões ainda ignoradas por ela, mas cuja sugestão as
desperta. Todas as crianças tem uma veia criadora e os contos prestam-se
a promover esse fenómeno de criação nas crianças.
Hoje, a televisão, a internet, os media em geral, roubaram tempo
para reunir e contar histórias à criança sendo o adulto o mediador, o que com a
sua voz, atitude, afecto e gesto conduz e orienta a criança com vista a
ajudá-la a superar os seus medos e anseios. Dito isto, as estratégias
editoriais em relação ao conto tradicional mandam retirar tudo o que possa ser
politicamente incorreto de acordo com os valores atuais. O adulto fica
descansado porque a obra é “recomendada”.
Como é referido no artigo em abordagem:
«Hay que tener en cuenta que la tradición oral no sólo se remonta a la
época en que se realiza la compilación, sino que en los cuentos, a pesar de
estar contenidos aspectos culturales o políticos de una época concreta, pueden
observarse los restos de antiguos ritos religiosos, primitivos, que se han
conservado de manera inconsciente en el simbolismo de las narraciones.»
E mais adiante o artigo confirma esta
linha de raciocínio:
«No es este el único ejemplo que
se puede encontrar en los cuentos de los Grimm. Curiosamente (o no) estos
detalles sangrientos han sido suprimidos en las recopilaciones actuales para
niños o las adaptaciones al cine a las que Walt Disney era tan aficionado. En
"La Cenicienta", por ejemplo, se suele contar el final del cuento
diciendo que las hermanastras se prueban el zapato de cristal (que en los Grimm
es de oro, a diferencia de la versión de Perrault) sin que les pueda caber,
hasta que se lo prueba Cenicienta. Pues bien, en la versión de los Grimm las
hermanastras, a instancias de su madre, se cortaban el talón y los dedos de los
pies para que el zapato les encajase, si bien el príncipe, debido al abundante
chorro de sangre que manaba de las pretendientas, se daba cuenta del engaño, y
éstas terminaban ciegas a causa de los picotazos de las palomas, que les
sacaban los ojos al salir de la boda de su agraciada hermana. La versión de Perrault,
que es la que normalmente se cuenta, y la que más se ha popularizado, es la más
inocente; aquella en la que no sólo no aparece la sangre en ningún momento,
sino que Cenicienta perdona a sus hermanastras y a su madrastra por los malos
tratos a los que era sometida. Algo similarl ocurre con 'Caperucita Roja' solo
que de manera inversa: en este caso es la versión de los Grimm la que más se
cuenta, pues es la que tiene un final más optimista (el cazador saca a
Caperucita y a su abuela de la tripa del lobo) mientras que la versión de
Perrault acaba con el lobo engullendo a las protagonistas y una moraleja en
verso que advierte de los peligrosos "lobos melosos". »
a)
A Disney adocicou na tela os filmes, não há sangue, não há lobos esventrados,
nem avózinhas comidas;
b)
Perrault, retirou membros cortados e o sangue das histórias.
Bruno Bettelheim (1975 - 1987: pp.
9-11), ajuda-nos a compreender melhor a necessidade de não esconder das
crianças as dificuldades da vida. “Infelizmente muitos pais desejam que os
espíritos dos seus filhos funcionem á imagem e semelhança – como se a
compreensão madura de nós próprios e do mundo e as nossas ideias sobre o
sentido da vida não tivessem de se desenvolver como os nossos corpos e
espíritos. Hoje, como em tempos idos, a mais importante tarefa na educação de
um filho é ajudá-lo a encontrar um sentido para a vida [...].Sendo assim,
tornei-me profundamente desgostoso com muita literatura destinada a desenvolver
o espírito e a personalidade da criança, porque não estimula nem alimenta
os recursos de que ela necessita, em ordem a enfrentar os seus difíceis
problemas interiores[...]. Para que uma história possa prender a atenção de uma
criança é preciso que ela a distraia e desperte a curiosidade. Mas
para enriquecer a sua vida, ela tem de estimular a sua imaginação; tem de
ajudá-la a desenvolver o seu intelecto e esclarecer as suas emoções; tem de
estar sincronizada com as suas angústias e as suas aspirações; tem de
reconhecer plenamente as suas dificuldades e, ao mesmo tempo, sugerir soluções
para os problemas que a perturbam.”
Como terapeuta, ajuda-nos a perceber que não é válido nem
pedagógicamente adequado truncar, adocicar, adaptar, alterar e/ou recriar as
histórias, os contos só para evitar que a criança seja obrigada a reflectir
sobre os contextos menos adequados ao tempo em que vive. Sugere que a criança
deve ser confrontada com contextos que a obriguem a refletir e a regular os seus comportamentos. Oferecer um jogo de guerra a uma criança pode ser uma boa forma
de confrontá-la com a violência, para que opte por ser um pacifista. Pode ser discutível!
O artigo em discussão refere
precisamente que é mais rico o confronto da criança com situações problemas
para que possa pensar/interiorizar a procura de soluções:
«Es decir, que achacar la
presencia de valores reaccionarios en los cuentos tradicionales, tales como
desigualdad social o machismo no es más que una forma de quedarse en la
superficie de su significado. Hasta los detalles más escabrosos, como el descuartizamiento
antes citado de una doncella, pertenecían a rituales primitivos de iniciación
que conllevaban la muerte y la posterior resurrección del individuo que era
sometido a tales desmanes (el paso a un estadio superior). Los sacrificios humanos,
pertenecen desde antiguo a las sociedades como una catarsis frente a la
violencia innata del hombre y también como puente de unión con lo sagrado. Por
lo tanto, según ,este autor, el sacrificio de estas "víctimas
vicarias" sería una forma de ejercitar la violencia para liberarse a la
vez de ella.»
A Importância do
Maravilhoso, da Fantasia, do Imaginário, e do Irreal nos Contos
É evidente que a reflexão em curso por este relator não perde de
vista a necessidade de determinar, também a adequação dos contos à idade/nível
etário das crianças, nem tão pouco esquece que há leituras mais adequadas e
mais direcionadas para rapazes do que para raparigas. É evidente que precisamos
de balizas, de modelos, de escalonamentos quando falamos de literatura para
crianças e jovens, mas também não podemos ser demasiados rígidos e estanques
nessa conceptualização. A classificação temática proposta em diversa
documentação para os contos é
interessante e merece constar aqui:
- Contos
maravilhosos: agrupa os contos de fadas e os seus antinómicos, as bruxas,
as feiticeiras, os ogres.
- Contos de
animais: colocam em cena animais como únicos protagonistas, ou como
protagonistas principais.
- Contos
etiológicos: dão explicação sobre a origem ou causa de determinados
fenómenos ligados à natureza, sem preocupação de veracidade (“A Lua e o Sol”,
“Os três rios”).
- Contos
faceciosos: contos para rir, em que a paleta do riso se pode alimentar de
várias fontes - denúncia, vingança, troça, um piscar de olhos, sorriso.
- Contos morais ou
filosóficos: pretendem que se extraia deles uma lição ou uma reflexão sobre
o homem e o mundo.
- Contos
acumulativos ou de repetição: histórias de encadeamento, como “A formiga e
a neve”
-
Contos de mentira, que podem assumir duas variantes - a história ser em si uma
mentira ou a mentira constituir um recurso actancial importante (“A enfiada de
petas”).
Muitos destes contos iniciam-se por fórmulas do tipo “Era uma
vez...”, “Há muitos anos...”, “Naquele tempo...”, “Num reino distante...” que,
situando o ouvinte num tempo outro que não o seu, isto é, num tempo fora do
tempo e espaço reais, permitem-lhe situar-se num universo que não é o da
realidade comum mas que, todavia, lhe fornece muitas das “chaves” para
compreender o seu mundo. »:
- A
criança vive uma vida fantástica, por vezes fora da realidade e necessita
de dar expressão à sua fantasia. É preciso que quem conta ou escreve ou
reescreve tenha em conta o interesse formativo da criança .
- Nos
primeiros anos de vida o conto de fadas, o maravilhoso, é fundamental para
descentrar a criança do mundo concreto e valorizar o seu sentido
imaginativo e estético.
- É
preciso ter cuidado evidentemente sobre um maravilhoso/horroroso que
caracteriza alguns livros, ou as imagens (hipertextos), em diferentes
suportes á disposição da criança, principalmente sem a presença do
mediador, do educador como suporte e amparo para esse contacto. Há coisas
por aí realmente agressivas e horríveis...Que em vez de promoverem a
imaginação, podem levar à morbidez e ao culto do disforme e do
terror/horror.
- Também
através do conto, podemos mergulhar no maravilhoso, no imaginário as
nossas crianças que são imaginativas em qualquer idade. A imaginação, as
situações fantásticas, o inverosímil, potenciam a imaginação estética e
artística da criança.
- Sabemos
que as crianças e jovens tem uma enorme capacidade para retirar para si o
que melhor as serve. Apoderam-se até de palavras e situações que não lhe
pertencem mas que as enriquecem em termos de personalidade. Viajar até à
ilha do tesouro, conviver com os liliputeanos, apreciar o Sexta-Feira,
admirar a força bruta de um ogre ou temer a floresta habitada por seres
irreais e medonhos fazem parte do cardápio que os contos colocam à
disposição do educador e da criança.
- Fadas,
bruxos, feiticeiros, almas penadas, artes maléficas, lendas germânicas
(contos de Grimm), magia, são representações que não prejudicam a criança,
são aquilo que classifico como literatura de nível B, mas que não deixa de
ser um recurso literário com o seu valor a nível do maravilhoso, do
fantástico e do irreal. Embora, nós educadores procuremos um maravilhoso
prenhe de poesia, de contextos ricos e de situações-problemas e dilemas
que levem a criança a reflectir e a pensar.
- Queremos
um maravilhoso em que um baralho de cartas se transforma numa corte (Alice
no Pais das Maravilhas), queremos também um maravilhoso em que os meninos
se montam no arco-íris...este é o maravilhoso poético que deve estar
presente em toda a literatura infantil de nível A . Maravilhoso,
imaginação, realidade, irreal tudo cabe num conto com qualidade. Um conto
com qualidade é uma janela por onde podem entrar fadas que nos levem ao
encontro da vida, do real. Podem por aí entrar também, o Constantino, O
Gaitinhas, O Gineto.
- Há
quem diga que os contos tradicionais foram um desastre e que são reacionários,
mas provaram a sua eficiência ao longo de gerações e foram explorados pela
infância, semeando, sabemos lá que sementes para pensar num mundo melhor .
- A renovação da LIJ deve partir dos que
escrevem, sem perder o exemplo de séculos de contos e de belos
livros. É preciso resistir ao modismo do gosto, às estratégias
editoriais, porque a literatura é uma questão de qualidade e sabemos (H.
Wallon) que a criança aceita e reflete sobre o maravilhoso do conto,
criando as suas próprias varinhas de condão.
«Em conclusão: consideramos que o conto tradicional, nas suas diferentes
espécies, constitui um elemento que permite abordagens multifacetadas e
enriquecedoras em todas as idades. Escutemos uma vez mais, e para finalizar, as
palavras de Georges Jean (1981: 201):
Os contos, o maravilhoso agradam, divertem, «dão a ver», instruem
em todos os sentidos destas palavras e, se é necessário saber ouvi-los e saber
dizê-los, reconheçamos também que eles abrem igualmente «as veredas e as
estradas» da leitura literária, muito simplesmente. »
“ Hoje verifica-se que as obras escritas para
as crianças suecas ou italianas se integram na produção editorial de outros
países, sem diferenciação de temas” Natércia Rocha
Domingos Boieiro
Nota:
Imagens retiradas da internet, sem créditos registados ou autoria aposta. Em caso de identificação ou reclamação de autores será corrigida de imediato esta informação.
Bibliografia
BETTELHEIM,
Bruno ( 1975 / 1987). Psicanálise do Conto de Fadas. Lisboa:
Bertrand
DINIZ,
M. A Seabra (1998) . As Fadas não Foram à Escola. Porto: ASA
GOMES,
José A. (1993) . A Poesia na Literatura para Crianças. Porto: ASA
ROCHA,
Natércia (1984) . Breve Hist. da Lit. Para Crianças em Portugal. Lisboa:
ICALP
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